segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Vida: Fluxo II

E hoje vi um homem revirar o lixo e beber a água empoçada dentro do galão...como naquela cena no filme "O Pianista" em que o protagonsita bebe a água suja e empoçada na banheira de um hospital abandonado, ou o mendigo que come a sopa do chão. O mendigo de hoje não está menos em guerra que um guerrilheiro dentro da trincheira. E o pior é que seus inimigos são indiretos, não se atira diretamente no mendingo. O mendigo também não tem armas para lutar, infantaria, comboio... e é um sobrevivente de guerra. Mas o que o impulsiona para a vida? Porque existe essa vida que mesmo suja e impossível reclama o seu direito de viver. É ela que o impusiona e faz com que o homem beba a água infectada, durma no chão,olhe para o sol, acorde. Porque mesmo quando nos falta tudo existe a própria vida, existe o órgão que continua a trapalhar, o organismo em seu movimento, algum motor interno que reinvincica à vida a vida. E quando o homem não possui amor, não possui dinheiro, ele tem de viver por si, para si. A vida que ele contém é tão grande que mesmo na falta de tudo ela possui a vontade de permanecer. No fundo, quando não se tem mais esperança de nada, vive-se para si. E essa é a maior potência e desejo de vida que um ser humano pode experimentar.

Fluxo I: Vida

Fui pego pela seguinte pergunta: Qual a coisa que você mais gosta no mundo? A minha resposta foi: Não sei, acho que não tem hierarquia das coisas que gosto, cada uma serve e me dá prazer num determinado momento de um determinado jeito. E ai a pergunta que fiz para mim mesmo foi: Existe um gostar melhor? Existe uma vida que seja melhor que a outra? Como aferir isso? Como colocar na balança uma vida e uma outra? Como medir o detino de um filósofo com o destino de um jogador de futebol? O destino de uma lagartixa e o destino de um cavalo? O resultado não será mensurável. Até porque não se trata dos mesmos fatores. A conclusão de um, a experiência de outro, como colocar tudo no mesmo saco e dizer: Olha...esse é o modo certo de viver, esse aqui viveu mais, melhor....Creio que quando colocamos a vida nos moldes do superlativo ela sempre perde...A vida são matizes...seria como dizer que somente uma cor pode agradar os olhos...tudo tem a sua necessidade...se vive de um determinado jeito é porque foi necessário viver assim, e dentro dessa necessidade há certamente atributos que levam a sentir prazeres e dores - necessários. Como é que uma pessoa escolhe o seu modo de vida? E uma gama de fatores o penetram: Necessidade, coação, crença, prazer. O resultado é sempre vago, incomensurável. Às vezes a vitória da vida é morrer de overdorse...às vezes a derrota da vida é morrer vetusto e preso numa cadeira de rodas...às vezes é pela fé que se cria uma vida em torno que te dá prazer...às vezes é pelo ateismo que se encontra os meios de se viver. Será também que existe um prazer certo, ou um modo correto de sentir prazer? A vida parece ser coisa que não se mede e compara.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Presente:máquina obsoleta

Trabalhar profundo com aquilo que se tem. Esgotá-lo. Sorver tudo para liberar-se.

Um dos males de nosso tempo é mostrar inúmeras coisas, com suas vitrines e propagandas, e nos forçar a ser dependente daquilo que sabemos que existe mas não conhecemos. Corremos atrás do "necessário" futuro ter e nos esquecemos do material que até agora tão bem estruturou a nossa realidade. Como num conto de Kafka. O excelente trapezista depois de trabalhar anos com o mesmo trapézio sente repentinamente uma vontade inexorável de possuir um segundo: "Só com esta barra na mão, como é que posso viver?"E no entanto, já se viveu. Primeira dor. O homem contemporâneo é como o trapezista, só que ininterruptamente desejoso. Ele não domina nem o primeiro trapézio e já quer os outros, todos os outros. Em sua mão jaz um quebra-cabeça sem imagem a ser formada e sem dobras de encaixe. Quantas dores como a do trapezista inventamos todos dias? Ora é num objeto que agora cremos necessário, ora é num amor, numa profissão, num estado de coisas...até o infinito. A idéia de infinito é bela mas sempre suscita alguma angústia naquele que a vislumbra. Enquanto o homem a vislumbra, a vida fica assim:emperrada. E a impressão de que a vida presente é uma máquina obsoleta que nunca foi usada. Presente:esgotá-lo. Sorver e liberar.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Horizontes

Em arte não existe progresso. Baudelaire já afirmava isso. Nessa trama, o sucesso e o fracasso não se molda a lá Capitalismo. As palavras correm é mesmo na horizontalidade de sentidos. Nada é vertical. Altura mesmo, só a do canto. E o canto é sem paredes, não se fecha, abertura. Homero ou Dante, Cervantes ou Kafka, qual o melhor? Impossível dizer. Talvez em arte tudo seja colocação de problemas, vertentes, matizes, um olhar longo de um ângulo ainda não visto. Desbravamento de territórios. Horizontes. E sentir pela arte é sentir pelo outro, como o outro, interseção entre almas. Linhas que se penetram. Horizonte que a cada momento envereda para um continente.Grandes Sertões. Tempos Perdidos. Cidades Invisíveis. Ulisses. Ondas. Processos. Ventos Uivantes. Paixões. Ilíadas. Aprendizagens ou Prazeres. Educações Sentimentais. Ficções. Estrangeiros. Náuseas. Divinas Comédias. Círculos de Giz. Crimes e Castigos. Homens sem Qualidades.Quixotes. Inomináveis. Montanhas Mágicas.Metamorfoses...

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O post de um e o comentário de outro

Esse post nasce de um encontro. Encontro de idéias. Começa num blog e termina no outro ( ou não termina...). O texto e seu comentário. As ironias que habitam os dois textos. Principalmente o do primeiro que é mais sutil e escondido, e por isso mesmo mais irônico. Mais forte. Aqui vai então a reprodução. A parceria literária:Cacau-De Castro. E a prova de que o pensamento evolui com os encontros, com a coação. Que o encontro é a ebulição do novo. Pensar é movimento, é colocar-se em movimento:

Lembretes:
1. comprar gibis da Turma da Mônica para intercalar com minhas maçantes leituras;
2. comprar cocaína (pois a nicotina não está dando conta do recado);
3. comprar (qualquer coisa. Afinal a regra é consumir!).
Postado por Cacau às 14:18

1 comentários:
de Castro disse...
É, o duro é sair dessa lógica. Mas podemos substituir o verbo...do Ter para Ser...substitui só...Ser um Gibi da turma da Mônica, Ser cocaína, Ser qualquer coisa...a vida ganha outra cor...bota no lembrete assim também: substituir todo o ter pelo ser...vou experimentar fazer isso...exercícios espirituais...

Consciência da fatalidade

Parece ser da fatalidade tudo aquilo que está atrelado a algum acontecimento, aquilo que é imanente e que não permite fuga. Não confundir a fatalidade com a tragédia. Nem toda fatalidade é trágica. Há uma linha tênue.

Nesse sentido, toda civilização produz a sua doença, a sua barbárie. Toda civilização carrega em si uma fatalidade. Também todo homem. Nós estamos sempre providos de meios para a degradação. Fabricação autêntica, participativa de nosso destino, manufaturada pelas nossas mãos, independente de todo erro e acerto. Não confundir a fatalidade com a tragédia. Em Édipo elas se confundem. No destino trágico sucumbe o homem, o herói, mas há um ganho de humanidade. O homem supera a sua dimensão ao criar para si uma nova consciência sobre a vida. Uma consciência trágica, mas não fatalista. O homem é transformado pela vida.

A nossa civilização não possui ares trágicos. O homem contemporâneo não tem uma dimensão maior de sua vida. Dimensão maior não quer dizer algo metafísico, além mundo. A consciência trágica é e se vale no próprio mundo. Ela é positiva, dá à vida a sua verdadeira medida, se valendo da dor e do limite. Não sei se uma consciência fatalista é positiva. Mas, certamente, possuímos a nossa consciência da fatalidade - será? - que agora mesmo estamos criando. O que ela nos ensina? E quais são as barbáries que fabricamos? O nosso câncer?

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Uma escrita confessional

Os movimentos do pensamento nos pregam algumas peças. Ou será o inconsciente ainda, que mesmo atropelado pelo razão, nos atravessa? Bem. Hoje acordei e a primeira coisa que escrevi foi o seguinte: "Não vejo mais muita graça no escrever para confessar. Quanto mais a escrita se aproxima da confissão mais ela se aproxima da culpa. O papel torna-se padre. A escrita a reza. Afastar a escrita desse ponto. O mais interessante é quando a dor não mais fala, não mais se escreve para simplesmente dizer um sofrimento, e sim quando ela ultrapassa a dor mais individual para entrar na dor do mundo."

E a prova de que às vezes não estamos na altura do nosso pensamento, que escrevemos uma coisa e vivemos exatamente o contrário, foi reler tudo o que escrevi hoje (pouparei vocês de tais confissões ridículas...). Também não ficamos todo o tempo dentro de nossa própria vertigem. Nos traímos. E o que escrevi hoje ao longo do dia ficou cheirando a confessionário! A prova irrefutável foi, já de noite, eu ter me interessado em reler alguns trechos da "Consciência de Zeno". E o livro é de uma escrita confessional! Zeno é aquele que, mandado pelo seu psicanalista, escreve a história de suas dores para resolver os seus problemas. A escrita pode e deve mais.

Até que ponto, podemos nos perguntar, a confissão da escrita, ou a escrita do divã se assemelha àquela confissão cristã? O divã é o Deus moderno? Deus é um grande divã? A quem a culpa se dirige no divã? Não entendo nada de psicanálise para responder a tais questões. Mas creio que a escrita, a literatura pode ir além das próprias dores de um indivíduo. A literatura é a escrita da dor do mundo.

Dos problemas de se ler

Tem personagens que são tão fortes que não aguentamos a sua vertigem. São tão densas e constantes as inúmeras metamorfoses que ele sofre, é tão variada e sutil a gama de experiências que ele sente, que não conseguimos acompanhar com firmeza o seu devir. O acontecimento é bem maior do que nós. E mesmo se esse personagem expõe exatamente isso - alguém que não está no nível do acontecimento que a vida lhe dá - nós não conseguimos. O tempo de que é feito um personagem não é o mesmo de que nos servimos para lê-lo. Então, algo escapa. Ele, mesmo caminhando em passos lentos, tem o seu processo em andamento. E nós, de quanto tempo precisaremos para realmente sentir e entender um personagem em seu limite? Muito tempo. E a vida ainda não está pronta para a vertigem que o ser quer ter. Mas isso é bom. E a vertigem será um dia retomada.

Nesses livros assim, não se pode também bobear. Qualquer consciência frouxa pode colocar tudo a perder. O livro exige um acompanhamento de médico na Uti. É pelo intensivo que o livro nos pega. Se não estiver em tal clima proposto, sente-se náusea (nada de Sartre por aqui), as palavras marulham, e se vomita o livro por não aguentá-lo, ou por comê-lo em certo tempo indevido.

Refiro-me aqui a leitura de "A maça no escuro", da Clarice Lispector. A vertigem foi tanta que o abandonei na página 170, na metade. Não consegui acompanhar o seu processo. Um pouco de culpa minha talvez, mas em sua maioria foi pela grandeza do livro. Voltarei a ele brevemente. Mas será que essa leitura pela metade foi em vão? Duvido.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Uma amizade

À amizade devo a elaboração e manutenção daquilo que mais quero: Escrever. Devo porque ela me convoca para a escrita, devo porque ela não cessa de me levar para o lugar em que mais amo estar, mesmo quando às vezes creio menos nesse lugar e no que de mim pode habitar nele.

E, no nosso caso, podemos dizer que o nosso encontro é escasso materialmente. Mas o que é um encontro? Um encontro é também uma idéia, um sentimento que a gente margeia, penetra. Assim, podemos nos encontrar quando não há corpo. Assim, o encontro se dá fora do tempo e do espaço, ultrapassando aquilo que há de mais básico na realidade. Assim nos encontramos com Cervantes, Shakespeare, como também com aquela pessoa que mora longe, e mesmo aquela que nem conhecemos.

E o que é um amigo senão aquele que encontramos e que nos faz caminhar com mais leveza e alegria um certo caminho? A escrita é o nosso caminho. Caminhemos então juntos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Incubadora

Desde sempre a espera o habitou como certeza. Espera e liberdade juntas e planas no nascer. E depois de nascer, ter de esperar para nascer de novo, pleno. Quantos foram os meses em que ficou ali, apenas sentindo o mundo, numa espécie de bolha? A realidade e o real não poderiam - jamais - ser o mesmo, o de todos. Sem linguagem, sem contatos, movia-se e chorava. De um nada ao outro. E o que fazer com aquilo que ia se acumulando dentro? Porque as coisas se acumulavam, a fome atrás de fome, um choro atrás de choro, uma sombra cega passando atrás de uma outra sombra cega, e os afetos - Quais? E o que ultrapassava para o campo do real-real, de seu corpo franzino e desajeitado, daquela alma que se fazia como a própria natureza bruta? E a realidade e o real de hoje - jamais - seriam fundado com a mesma sensibilidade do senso comum. E aqueles meses na incubadora, prematuro, vivendo mas não vivendo, sendo de outro jeito, foram fundamentais para a constituição de seu ser.

Introdução a ela

De fato, a sua beleza não era ideal. Mas que beleza é essa que precisa de uma idéia de ideal para se realizar? Muito pouco reteríamos ao olhar pra ela se tivéssemos tal idéia de beleza, de arquétipos, protótipos, paradigmas.Não. Para vê-la com plenitude (o corpo e alma juntos) era preciso ter olhos sensíveis e apurados. Olhos não embrutecidos e corrompidos pelo mundo.

E ai se via ela toda:essa alma, envolta no véu da delicadeza, onde a timidez não se mostra como medo, mas sim como respeito silencioso, onde a simplicidade lateja como traço mais rascante e elementar. Simplicidade que saboreia uma sabedoria que só a ingenuidade produz. Simplicidade que combate de forma terna essa ordem caótica que habita o mundo como sintoma raivoso e crônico de uma degradação. E no meio disso tudo, onde reside a esperança? Nela. Naqueles traços que naturalmente compõe. Naquele sorriso onde todo a alma é dita. Naquilo que o mundo não conseguirá nunca destruir: a beleza ingênua e delicada. Pois que armas usar contra a beleza? Contra o amor? Contra a flor? "A beleza será convulsiva, ou não será?" E num ponto condensado da vida (Ela), tudo que a vida precisava.

E aqui um poeta que a viu. Qual será o seu estado depois de tal visão, de tal esperança? Na certa, já era afetado por ela. E essa ainda pouca influência - porque a vira somente algumas vezes - já era uma espécie de introdução a ele. E mais ainda uma introdução a ela. Havia mais. Poderia, conseguiria ver? E aqui um poeta já arrebatado por aquilo que vislumbrou.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Questão de gosto?

Se arte fosse somente questão de gosto, gostar ou não gostar, seria uma questão absurda essa minha louca paixão. Se perguntamos ou respondemos no final de um filme ou de um livro se gostamos ou não é apenas questão de hábito e de uma urgência comunicativa. Dizer o que de qualidade depois - imediatamente depois - que se assista a um filme de Antonioni? Dizer o que rapidamente sobre um romance de Clarice Lispector? Nada que seja digno da obra.

E mesmo assim, a arte não se resume ao problema de um gosto particular que se adequa a um certo estilo, a um certo pensamento que lá está exposto. É antes uma problematização. E uma problematização bem produzida, miméticamente produzida, poeticamente produzida. O que está em jogo ali? Que problemas essa obra atravessa? Que imagem é essa que ainda apenas vislumbramos? Talvez essas questões correspondam mais ao processo de experimentação de uma obra de arte. Quanto menos formos na obra com objetivo de "encontrarmos algo" mais saberemos da obra. A experimentação na arte é bem diferente da experiência da ciência.

E também: Um livro não se termina, é apenas simbólico o encerrar de suas páginas. Aquilo que se experimenta ali não diz respeito a um final narrativo ou mesmo vivido. Arte é coisa que se rumina, saboreia, que se deixa ficar dentro da gente sem saber pra que.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Cegueira poética

Havia cegado de tanto ver o mundo. Olhava, olhava, coçava a vista com desespero. Não era tudo branco, nem negro.Não, não, estava tudo ali, os móveis, a sua mulher, as nuvens e os pássaros dentro da janela,a poeira no chão. Enfim, tudo estava ali, na sua frente, representado. Mas já não conseguia extrair nada de nada. Quem dizia o que para ele? Nada. E ele com os seus olhos esbugalhados via menos que os cegos, que Borges, que Homero, que Tirésias. Parecia estar imerso no vácuo da linguagem, parece até que nele já nem havia linguagem. Era sempre um balbucio, um ruminar, umas frases feitas sobre tudo. Dentro dele já não havia relação entre as coisas.


Tentava lembrar das imagens que até então viu. E eram nada mais do que fotografias de estrangeiro.Foi até o espelho para tirar a grande conclusão. Não se viu. Ou melhor, ele estava ali todo, nu, mas não sabia quem era. Era uma cegueira poética.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

De um certo Platonismo no Amor

E ainda dizem que a filosofia está distante da realidade. Distante é talvez a influência de um certo pensamento que não cansa de agir sobre a realidade. Assim, pois, pensamos e sentimos de forma menos originária do que acreditamos. Um exemplo?

Quem se atreve a dizer que nunca amou alguém platonicamente? No que consiste isso que tão comumente chamamos Amor Platônico e que não cessa de nos arrebatar nas nossas experiências afetivas? Que diabos tem a ver o filósofo grego com esse sentimento que agora pulsa em mim como verdade e como particularidade quando penso na mulher amada? E eis Platão no meio do meu amor, num intervalo de quase 2.500 anos, com a cara mais descarada do mundo, segurando vela para nos iluminar...e que sombras ela proporciona...

Geralmente dizemos do Amor Platônico o mais latente, aquilo que salta logo aos olhos quando pensamos num ser que ama platonicamente, ou seja, um sentimento de exagero. Exagero avassalador, desmesura de um sentimento que não tem forma, que não cabe dentro da gente. Sofremos, choramos, mal comemos, mal dormimos, mal vivemos. E o pensamento e o coração imersos numa certa fúria de sonhos e idéias. Como diz Comte-Sponville, "Aliás, o que é estar apaixonado senão cultivar certo número de ilusões sobre o amor, sobre si mesmo ou sobre a pessoa de pela qual se está apaixonado?" É o exagero que marca, é uma dose muito alta de romantismo, o Amor Platônico. Mas por quê o exagero ao pensar no ser amado? E aqui está o rasgão que Platão faz na realidade. Só exageramos no amor porque idealizamos.

No banquete, obra do filósofo onde se discute o amor, existem duas vozes que repercutem: Aristófanes e Sócrates. Aristófanes reside em nós quase como domínio público. Quer ver? Ele aparece no Banquete nos contando um mito de como éramos: "Outrora nossa natureza não era como é hoje, era bem diferente. Cada homem constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados, tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos totalmente idênticos num pescoço perfeitamente redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro; tinham quatro orelhas, dois órgãos de geração e todo o resto e, conformidade." Eram três os gêneros da espécie humana: os machos, contendo dois sexos masculinos; as fêmeas, dois sexos de mulher; e os andróginos, com o sexo masculino e feminino. A força dessa espécie era tão imensa que resolveram desafiar os Deuses. Como punição para o desafio, Zeus os dividiu ao meio num corte vertical. Desde então, o destino é encontrar a nossa parte separada que irá nos completar perfeitamente. Encontrar a nossa alma gêmea, a nossa cara metade, que nos devolverá o êxtase de sermos Um novamente, total. O amor para Aristófanes seria essa completude,uma fusão, esse júbilo ao encontrar o ser que desde sempre é também nós mesmo.

Platão, na voz de Sócrates, refuta Aristófanes. O sentimento de amor, esse com que buscamos a nossa metade, não pode ser nunca completude. É incompletude. Só buscamos no outro o que nos falta. Só desejamos o que não temos. Se estamos sempre fissurados, esse sentimento que nos movimenta em direção ao outro é o Amor. Amor por nós mesmos, amor por aquilo que não somos e que temos que reconstituir. Mas, na busca por essa totalidade, a própria busca é o sofrimento, mas um sofrimento ligado a um certo prazer de conquista, de sonho. Porém, Eros nunca está saciado.

O ponto comum entre as duas teorias está talvez na idealização. Seja sendo completude ou incompletude, o que nos move é uma certa idéia, um certo ideal que temos de alcançar através da pessoa amada, através do amor. Um certo paraíso. E eis aqui também o mito da caverna para reforçar a grande luta de Platão em nos conduzir para um mundo Ideal. O homem libertado de seus grilhões onde só via sombras, agora vê a luz, vê a verdade das coisas. O amor platônico não seria um estado que buscamos onde vemos um mundo com mais verdade, com mais clareza,com mais harmonia, onde tudo é menos vacilante, como a sombra que não cessa de oscilar, do que é? A busca pela completude, essa beleza solar de tudo, não seria um estado de imutabilidade onde reinaria a paz total?

Não podemos deixar de elogiar a grande alegoria que faz Platão e o caráter revolucionário desse mito. O homem libertado, o homem que não se permite terminar a busca de um mundo melhor - Ideal - é o elogio que Platão parece fazer. E talvez seja essa a imagem mais forte que retemos dele, do homem que não se aliena numa visão com antolhos, que olha pros lados e pra trás, sempre almejando subverter o que está posto. Bem sabemos como precisamos idealizar nos campos de nossa realidade que já estão secos e infrutíferos.

Toda idealização é uma violência contra o real.

Mas me parece que, nos domínios do amor, essa idealização do outro soa um pouco desrespeitosa. Nesse rasgão que Platão faz na realidade, pela idealização, ele deixa de legitimar aquilo que existe por si mesmo como o estrangeiro da nossa idealidade. Porque o outro não pode possuir a sua própria força, como algo que existe por si e para si? Uma sombra também existe para si e está tão impregnada de verdade como a luz. Nessa nossa busca do amor idealizado não desejamos o outro como ele é, nos seus devires e singularidades, mas como representação de nós mesmos, do ser ideal que um dia montamos para nós. E quantos amores já perdemos nessa idealização! Quantos! O outro para nós carece de ser ele mesmo! O outro é sempre violentado em nome de uma idealidade! E o quanto de real matamos, e quantos outros já matamos, quantas realidades! A idealidade pelo que violenta também impossibilita outras realidades que podem nascer fora de nós.

E o ser platônico no final de sua idealização frustrada - o outro por mais perfeito que seja frustra a idealização... - no fim da relação que não deu certo ainda diz com um certo ressentimento: você não era como eu imaginava, me decepcionei com você, pensei que você era uma coisa mas é outra...

O outro me parece ser o lugar que não permite fincar bandeira. O outro não se deixa dominar. E podemos amar a outra pessoa assim como ela é? Sim. O outro, indeterminado, alheio ao que conhecemos, novo, singular, real (mais real do que qualquer idealização) nos permite um júbilo pelo simples fato de exitir."Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa", como nos lembra Pessoa. A paissagem que não possui o homem e nos encanta. Inexorável e apaixonante.

E o amor que é também da ordem do real não se permite idealizar. O amor é sempre outro. O outro é o real que violenta a idealização.

O que se passou?

Nessa alma conturbada, movida a turbilhões, encontrava raros momentos de plenitude. Quando as suas ações eram traços de expressionismo, quando o agir de sua alma era um tufão que arrastava café da manhã, banho, bom dia, a sua grande fuga era abandonar-se, mas como quem segura o último laço de corda para não cair no abismo. Mas ontem - que dia foi ontem? - o que se passou? Não tinha nada daquilo. Se pouco, se muito, se exato, não sabia. Se eu, se outro, se quem, não sabia. Mas naquele marasmo do dia, mansidão da alma e da terra, a lágrima escorria - como poucas escorreram até então, de um modo tão delicado que parecia pintada por um artista sem mãos, sem textura de pele e peso - enquanto via a chuva correr transversa por entre as árvores, no pé da montanha. E ao fundo, uma melodia de Schubert compunha a cena. Se cansaço, se vitória, se acaso, não sabia.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O limiar da quebra

Constatação, sensação pura, erro, paranóia, não sei bem o que é isso. Mas algo em mim se faz presente. Quando tudo está bem é que na verdade parece não estar. Duvido constantemente de uma harmonia uníssona que dure. Será isso também uma espécie de pessimismo? No mar calmo dos fatos, onde tudo parece parado - e que realidade é essa onde está tudo parado?- está sempre latejando algo submerso que fatalmente detonará.Talvez uma realidade mais próxima do orginário, menos humana, racional e civilizatória, beirando o caos. O limiar da quebra é sempre este agora. E a impressão de que esperamos mesmo essa quebra pela vida inteira. Numa preparação para a expiação. Numa noite silênciosa imersa no sonho.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Das vantagens de ser outro

Das vantagens de ser outro, muita gente não sabe. Ouvi o comentário de que um homem que imita o outro é sem personalidade. E a parte teatral do meu ser - aquela que mesmo sem o palco atua - se revoltou. Não seria o artista, não por acaso, aquele indivíduo que consegue mais largamente penetrar, sem sair de si, através da eterna máscara que evoca, numa atmosfera que lhe era alheia? A cada interpretação o artista se infla com os agenciamentos afetivos que faz na alma de qualquer persona. Um agenciamento intencional é o palco do artista.
Fato é que muita gente não sabe o porque imita, e aqui parece residir o perigo. Aqueles indivíduos da moda, aqueles que seguem uma tendência, ou o outro sem ao menos se perguntar o porque, é que deixam de ser eles mesmos. Agora aquele que entra na outridade, na heterogeneidade de cada ser, com uma consciência de experiência, para extrair os frutos que, sozinha, a sua alma jamais conseguiria alcançar, ganham, por assim dizer, mais do que uma personalidade. Acrescido o individuo que entrou no outro jamais se esqueceu. É ele mesmo, no confronto que se permite, uma entidade dialética que na dualidade lança ao mundo um terceiro ser. A experiência do outro é também a comunicação que nos grita com uma certa urgência antiga. A lógica do mesmo, do igual, do indivíduo ensimesmado, é sempre aquela lógica que já conhecemos. Não viver com o outro para só encontrar o que de si habita no outro ser, e assim se regozijar. Mas habitar o outro para transfigurar aquilo que em si é, até então, inabitável.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

0 (Zero)

Ao beijar os teus olhos calejados, retirei uma palavra enferrujada de dentro do teu peito. E quanto excesso de nada - fincado entre o ar e a matéria - fazia de ti a dobra movediça que enterrava um amálgama de amor.

E agora era um latejar solto - quase salto - de tudo que antes minimamente preparavas nas fornalhas inconclusas de tuas modelações.

Agora dormes como se não soubesse o que é sonho. Feérica, túmida, ornada...

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Verso e reverso

...E diante de tantas possibilidades de ser...me perco. Escolher é mais retirar algo de mim do que colocar algo no mundo. Escolher é aprisionar para sempre uma abstração. O futuro não é mais que o desterro de tantas rotas e rumores. E quantas passagens de paisagens nulas, erros do devir, acontecimento feito e morto. E o desejo de ser não ser um nome...

...E o reverso é conviver com verdadeiros fantasmas. Tudo aquilo que eu não fui - passado, presente e futuro - me assombra. Como numa condenação. E quantos eu já deixei de ser! Quantos! Meu presente funda mais cemitérios do que toda a humanidade. E quantos enterros infundados, sombras de mim, lápides sem textos.E o desejo de ser um nome...

Desvios...

Ser mais quando se é todo o inverso do que se deseja. Não estar no melhor de si e querer sentir todas as potências do inacabado. Consumir tudo aquilo que falta. Consumir mesmo só o pedaço do que é. Querer ter a experiência do feio, do caos, do desforme, para sentir todas as forças da natureza que eternamente negamos. Pensar que se evolui também decaindo, beijando o chão, comendo a própria merda...Pensar em não ser para afirmar-se. Evoluindo onde ninguém acha que é estrada. Ir pelo desvio. Ser o próprio desvio...Desmontar toda a falsa aparência que montamos para a realidade. Habitar a irrealidade de que somos feitos. Entrar em crise para criar. Entortar a reta que iludimos o nosso próprio destino.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Escravo da obra

Começara a ler por recomendação da mãe. Sempre aqueles romances mais levinhos, água com açúcar, onde a leitura corria rápida e solta. Mas ele começou a tomar gosto pela coisa e passou a buscar alguns livros mais sérios. E passou a ler também com outros objetivos: dizia que queria trazer a obra para dentro da realidade. E só havia um meio de se fazer isso: entrar na obra de corpo e alma.
Foi então que a mãe começou a desconfiar do hábito de leitura do rapaz, agora já na casa dos vinte e poucos. Ele realmente queria viver o personagem. E tudo começou com uma brincadeira simples ao imitar a barba de Hemingway enquanto lia os seus romances. Mas ai ele gostou mesmo de querer ser outro.
Quando leu o Ensaio sobre a cegueira andou de um lado para o outro com uma venda nos olhos, retirando-a apenas para terminar de ler a obra.Vivia mesmo como um cego. Foi uma das melhores experiências que teve.
Mas a coisa começou a degradar.O romance de Nabokov foi uma perdição para ele. Chamava toda adolescente de Lolita e tão bem vez que chegou a se apaixonar por uma tal de Eduarda que nem de longe lembrava a personagem provocante do russo. Também se apaixonou por uma mulher mais velha quando leu A educação Sentimental de Flaubert. Quase morreu de amor.
Obviamente que, quando leu a obra mais importante da Clarice, comeu uma barata. Uma só não, várias...porque ele não entendeu direito o sentido do romance e a cada releitura comia uma família inteira de baratas. Até fazia pequenas armadilhas para retê-las...acabou não entendendo nada...nunca mais quis ler Clarice...e ainda ficou duas semanas no hospital para curar-se da intoxicação alimentar...para todos a culpa tinha sido da maionese vencida.
A coisa se agravou quando começou a ler as obras de Bukowski. Achou que era mesmo um velho safado e constantemente andava bêbado. Bebia para escrever alguns contos pornográficos. A mãe então não aguentou mais. Quis interná-lo. Ele fugiu.
A mãe não tinha notícias dele até um certo telefonema da polícia. Estava preso. Acabara de matar uma velha. Foi pego em flagrante ao deixar a porta aberta do apartamento em que vivia a senhora...tal como o assassinato de Raskólhnikov. Teve azar porque no exato momento da execução passava um vizinho...Foi preso com a machada ensanguentada numa mão e na outra um exemplar de Crime e castigo.
Ao chegar na delegacia ainda gritava:"Isso é absurdo!!!Um absurdo!!!Eu não posso ser preso!!! Na obra não tem vizinho!!! Essa denúncia não existe!!! E cadê a irmã? Falta a irmã para morrer!!! Lisavieta!!! Lisavieta!!!"

terça-feira, 31 de julho de 2007

Bergman e Antonioni

E, assim, numa tacada só, perdemos dois grandes mestres do cinema: Bergman e Antonioni. Numa segunda-feira fria e desértica, apta para os personagens silenciosos do sueco e para o vagar perdido dos personagens do italiano, fiquei eu mesmo silencioso e perdido. O que me resta é ver e rever a obra, numa homenagem tão pequena, e procurar ali os afetos e pensamentos que genialmente estão exposto, colocando-os em mim. Alongando-os no tempo.
Apesar das diferenças, tocam em lugares comuns. Não vou fazer uma crítica aqui de nenhum deles porque não sou capaz. Lembro apenas uma frase de cada um, dando continuidade à crítica e aos textos anteriores que coloquei aqui, que revelam uma influência explícita. Também sobre o amor.
Antonioni diz que o mundo contemporâneo está "doente de Eros". Bergman diz que no nosso tempo todos são "Analfabetos sentimentais".
Fica a homenagem e a dica pra quem não conhece a obra. Qualquer filme vale. Mas tem que se preparar...longe do formato americano, o filme exige. Pede do espectador mais do que pode dar e receber. É necessário rever, sempre. E ficar ruminando tudo...como naquelas obras de artes eternas. Com Bergman e Antonioni aprendemos a ver. Não somente ver uma imagem cinematográfica, mas a ver e ler a vida com mais detalhe, com mais particularidade, com mais impessoalidade.
Obrigado.

sábado, 28 de julho de 2007

Emergência do novo

Estamos carentes do novo. E nessa busca frenética por algo novo realmente grande que faça uma ruptura impactante, banalizamos o novo. É tudo uma novidade média. Digo isso porque parece que no contemporâneo a coisa já nasce querendo ser nova, reivindicando uma vanguarda. Mas suspeito dessas coisas que tem a ambição de já ser um James Joyce logo na sua primeira página. Antes do novo, antes da beleza, parece que a criação artística tem um compromisso com a verdade. E as vezes a verdade se repete, se sustenta, pede para ser exaurida. Temos mesmo que entrar nela como quem entra numa prisão para sairmos realmente livres. A busca pelo novo deve continuar, mas não com essa sede de já ser. Às vezes é brincando mesmo no repetido que se encontra um novo modo de ser.

A prova

A existência do Amor é a prova de que nada, nem ninguém, se basta.

Cinco textos inúteis e um poema

A utilidade parece ser uma das mais importantes categorias que configuram o nosso modo de ser atual. Eu, como bom contemporâneo, ultimamente tenho questionado a utilidade de tudo, inclusive a minha própria. Então descobri, fortemente influenciado por essa nossa realidade, que se tornou o que se é - e sabemos que o mais natural, o mais habitual, não é tão natural assim - que sou uma das coisas mais inúteis de meu tempo.
* * *
O meu interesse sempre se desenvolve onde não há pragmatismo. Ando gostando daquelas coisas que só existem, e se consomem na própria existência. Ando gostando daquelas coisas que ficam em silêncio dentro da gente, quase paradas, durando e brincando, sem exigências de nenhum ato.
* * *
A arte, e principalmente a música, é uma das coisas mais inúteis da vida. Ela é e pronto. A melodia se desenvolve, grita pro mundo alguma coisa e cessa. Acontece. Algumas pessoas sentem interferências dessas ondas que fazem uma espécie de coceira em nossos ouvidos e nossa alma. As vezes dói também, lateja lá no fundo. Mas me parece que toda dor é também inútil. A melodia...o que se ganha compondo-a senão o inútil de nós mesmos. Adoro a música que de tão inútil é essencial.
* * *
E nessa crítica à utilidade coloco em questão os afetos. Será que a gente só consegue gostar, num egoísmo delicado e profundo, daquilo que de alguma forma para nós terá alguma serventia? Nós é que estamos escravos dessa lógica do sentir que está imersa na lógica do obter. O amor e amizade estão entranhados, doentes. As vezes o que se ama não é o ser, mas o gesto dele que nos vem até nós, nos agradando. Pode-se transferir a pessoa e ficar com o gesto. E assim os beijos se reproduzem aos montes nessa juventude...de boca em boca..atrás do prazer que se cumpre. O amor mesmo não ama a pessoa- e toda pessoa é feita de mais inutilidade que utilidade - torna-se descartável. - ama o gesto. O amor virou capital de troca, com margem de lucro, deficit, alta e queda na bolsa de valores de nossos sentimentos.
* * *
Tenho fugido dessa lógica como de uma epidemia que se pega pelo ar, apenas pelo convívio. E o lugar de quem foge, às vezes, é o exílio para o país dos desiludidos. Lá tem muita gente. Poetas, heróis, vilões, crianças, pessoas que quase morreram de amor, seja qual amor por qualquer coisa. E no país dos desiludidos o tempo é outro, convive-se com gente morta e até com gente que ainda não nasceu e já está desiludida. Fetos que ainda na barriga da mãe se agarram a qualquer coisa para não cair no abismo do mundo. E entrem os que vivem, os que viveram e aqueles que não querem viver...encontro um senhor, já careca, óculos grande acima dos olhos, uma aparência tão simples, tão estranha para aqueles que acabam de chegar no país do desiludidos, que me emociona. Carrega consigo uma folha de papel que diz com muita mais beleza tudo que tentei dizer aqui. E ele era, também, um desiludido do amor. Daquele amor, também, mais além daquele de homem e mulher. Desiludido do amor bruto do ser com a vida. Eis o poema de nosso amigo:
* * *
AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 7 de julho de 2007

Para todos, alguma solidão

Estou esgotado. Uma dor profunda me atormenta. Já é noite. Passei o dia inteiro diante de um livro de filosofia, A Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant, e não consegui avançar nem cinco páginas. Certo é que o conteúdo é de difícil acesso mesmo, mas não foi esse o problema. Nem também a concentração desse jovem leitor que às vezes o impede, sem o mínimo esforço, de focar continuamente o instante. O problema não vinha de dentro da relação sujeito-livro, mas de tudo que a circundava e que a impossibilitava: entre telefonemas, conversas altas, interrupções, sons de televisão e rádio...não consegui me concentar para realizar a leitura. Então, depois de quase três horas de batalha silenciosa com o meu redor, resolvi sair e andar pelas ruas. Tento reproduzir aqui o que pensei durante a caminhada.

Estamos vivendo num tempo inimigo da solidão. Esta é sempre pensada numa lógica negativa. Pessoa só = pessoa triste ou com problemas. Creio que a solidão é muito mais que isso. Mas das delícias da solidão somos privados. A sociedade não permite ao individuo nenhum momento de paz. Há sempre algo que o convida, que o seduz, que clama por atenção. Entre propagandas, entre inúmeras informações, entre vastos entretenimentos, a subjetividade do individuo é solapada para a alienação de si. Tudo lhe chega, tudo ele absorve. Mas pouco faz com esse mundo que se tornou grande demais porque o que falta agora é consciência de si, trabalho de si. Não há tempo para o nosso encontro. Vale lembrar o que disse Vergílio Ferreira acerca da solidão: " A solidão tem que ver conosco, não com os outros ; e o isolamento é só com os outros que tem que ver. O isolamento gera-se numa dimensão física; a solidão, numa dimensão metafísica. Assim, a solidão exprime apenas a ambiência de uma autenticidade."

A questão é que hoje a contemporaneidade não permite ao indivíduo nem a possibilidade desta dimensão física do isolamento para talvez se chegar na dimensão metafísica da solidão. Sim, sei que podemos estar só no meio da multidão. Mas falo de uma solidão mais interessada. Uma solidão desejada, onde o indivíduo encontra-se para extrair de si algo originário. Penso naqueles que não a procuram e que apenas se consomem na outra solidão, naquela dogmatizada como uma patologia. Perdem algo muito valioso, inolvidável e intransferível. Pois, o que pode dizer de substancial o individuo - e a sociedade que o gera e o representa - que não sabe nada de si?

Lembro também de Dostoiévski em seu "Diário de um escritor" dizendo que o pior de sua prisão na Sibéria não foi o confinamento, mas a impossibilidade de isolar-se, de ficar só. Algo de heterogêneo se descobre e se cria no ato de estar só, ele sabia. Creio que também um dos problemas da contemporaneidade é o da emergência do novo. Há tempos que não criamos algo realmente novo e grande. Há tempos que reproduzimos, citamos, rememoramos - coisas importantíssimas para a constituição de um ser, de um povo - mas insuficiente para caracterizar algo como originário. Duvido que haja uma grande obra - artística, filosófica, científica, amorosa - que não tenha sido feita sem algum momento sublime de solidão.

Não fiz aqui uma apologia da solidão. Apenas tentei lhe restituir alguma qualidade que o mundo de hoje lhe nega. Para todos, alguma solidão.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

A linha tênue

Em plena madrugada, acordei, ensopado de suor, sem saber distinguir aquilo que pensava. Parecia que eu estava entre a lembrança e a fantasia. Num primeiro momento, achei que isso fazia parte de um passado já muito perdido. Num segundo, pensei que fosse uma reminiscência de um sonho bem recente. Depois lembrei que não havia tempo em minha madrugada para sonhar. Parece que imaginei tudo.

Até agora não sei o que fiz, se sonhei ou lembrei. Depois de algum tempo não percebemos as raízes de nossas idéias. Quanto mais distantes ficamos da origem das coisas mais a confundimos, colocando nelas um pouco de nossa fantasia. Talvez, para alguém já bem envelhecido, não saber o que foi realmente vivido, a base de todo os seus pensamentos presentes, seja um grande tormento, impenetrável. Pois, ainda agora – sou um homem com pouquíssimos cabelos brancos – entro em desespero quando me ponho a lembrar de minha infância e olhar para o rosto de minha mãe com desconfiança.

Acho que vou carregar,assim como a humanidade carrega as suas histórias, esse embaralhamento de sensações e idéias. Não por minha vontade, mas porque sempre foi assim, imanente, desde todas as horas, sem a certeza de que foram reais. Talvez, na hora de minha morte – já um pouco acostumado com isso – eu não queira ter certeza de nada e, só por capricho, eu comece a brincar de sonhar com as minhas memórias e, com lágrimas nos olhos, lembrar de meus sonhos.

Coisas anônimas

Nunca saiu de casa com pretensões de encontrar-se. Nunca conversou com alguém para dizer um pouco de si. Dizer-se ou encontrar-se: para isso bastava a solidão e a casa. Na medida em que saía dela ia esquecendo-a. O ônibus, a calçada irregular, os olhares enviesados dos passantes, tudo isso determinava o vôo de seu pensamento. Interferiam as nuvens carregadas desse dia que não conseguiam desaguar. Tão imerso ficava entre as coisas. Tão imerso que não lembrava para onde ia.

E quando chegava em algum lugar não procurava nenhuma semelhança. E que idiotice seria isso. Não procurava nada. E tão bem fazia isso – esse desinteresse por si – que nutria muita coisa. Dizer isso? Não. Para que? Quem entenderia? Ouvia tudo, deixava as pessoas falarem ao vento. Se perguntavam alguma coisa sobre ele, respondia quase sem vontade com infinitas expressões curtas.

Para ele era sempre o outro que estava em jogo. E essa satisfação era intransferível...essa tola descoberta desinteressada das coisas...das coisas inteiramente anônimas. Coisas sem dono: para retê-las precisava existir e consumi-las em silêncio. Saboreando-as. Anônimo entre outros, entre ele mesmo.

E ninguém entendia o motivo daquela expressão no seu rosto.

Hora distraída

Foi dentro da hora distraída que o mundo raivou. Não havia como proteger-me. Nenhum apelo podia. O dia já era outro. Aqui dentro uma lucidez trôpega imobilizava. Mas o que explodia? Nada. Estava tudo contido, enrijecido, condensado como um átomo. Não havia como desfazê-lo. O jeito era deixá-lo dentro de mim, um pouco inútil. Será que um dia poderei esquecê-lo? Não. Impossível. O corte cresce dentro da gente fazendo implodir qualquer coisa. A pele cumpre bem o seu papel de maquiar a alma. E então, sabemos que é tolo tentar retornar para um estado sem sofrimento. Num belo dia – de sol ou de chuva – o mundo continua raivando dentro. Quase despercebido. Desesperado.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Textura incidental

Hoje acordei sem esperar nenhum momento meu, compreende? O meu desejo de possuir as coisas - se havia - permanecia adormecido. E foi caminhando pelo dia com uma certa ingenuidade preguiçosa que aos poucos ele foi me atraindo através de seus lugares furtivos de sua prática incidiosa.

E foi, aos poucos, roçando os sentimentos que cada acontecimento provocava, desprevenidos e despretenciosos, que percebi a ação do dia sobre mim. Foi lendo e sentindo a sua textura incidental que fiz de mim algo que sozinho e consciente jamais realizaria. E assim, passei a querer ser como o dia, com as coisas a se misturarem num desvelamento inacabado, numa profusão destemida e múltipla a deixar seu rastro no tempo e em cada ser que gradualmente fundava a sua existência.

Havia também interferido na ordem do dia com a minha ingenuidade preguiçosa? Fatalmente. O mundo era o texto que todos, querendo ou não, haviam escrito. Tecendo e destecendo. Dentro e fora do ser. Nos movimentos...

O trabalho de um dia inteiro

Não lembro mais onde ouvi ou li essa história. Sei que ficou na memória. Apenas reproduzo:

Depois de passar o dia inteiro debruçado sobre a escrivaninha, o escritor James Joyce decide mostrar o seu trabalho exaustivo para o seu grande amigo. Este, sempre impressionado com a vasta produção do escritor, no mínimo dez páginas por dia, dessa vez se espanta. Havia nas suas mãos apenas uma folha com uma única linha. O amigo lê, pensa e interroga o amigo:
- Passou o dia inteiro procurando as palavras certas?
- Não. - disse Joyce - As palavras eu já tinha. O que procurei foi a ordenação perfeita, a sua inteira harmonia, numa única frase.

domingo, 24 de junho de 2007

Segunda Fatalidade

Quem dera se para o Amor o sentimento do Amor bastasse.

Primeira Fatalidade

Pensar bem fundo nas coisas, com gravidade, é a minha forma mais sutil de chorar por não saber, às vezes, viver.