terça-feira, 29 de julho de 2008

Poesia, História, Memória

No átimo de tempo onde o homem possui uma consciência, ele entrevê a sua finitude, não como espécie, mas como indivíduo, e é também a partir dessa consciência de si que o homem pode vislumbrar uma tentativa de ultrapassar essa linha efêmera de vida que o relega ao destino do esquecimento. Algo no homem sugere uma outra forma de permanência que não aquela sugerida pela circularidade da vida das coisas da natureza que, tal como nos aponta Hannah Arendt, no mundo grego, conferia um status de imortalidade. O homem contesta esse caráter de imortalidade construindo para si um material que preservaria, no sentido e até onde no tempo o homem perdurasse, os feitos e as falas significativas, dignas da memória, na qual ele pudesse angariar para si uma sabedoria e uma experiência.
É de grande valia a análise de Hannah Arendt sobre as questões da origem da poesia e da história em seu livro Entre o passado e o futuro, principalmente quando ela nos relembra a passagem onde Odisseu escuta os seus próprios feitos na Guerra de Tróia na corte dos Feácios. Estaria ali na Odisséia a origem da história e da poesia condensadas em uma passagem? Mais do que apenas um grande exemplo, o que podemos extrair desse trecho é o caráter incontestável de busca no mundo grego pela preservação da ação e da fala, seja através da mitologia, da história, da poesia ou da filosofia. É lá que o homem passa a construir uma estrutura lingüística em que ele pode reter uma sabedoria de vida que pode se levado a outras vidas e tempos.
Seja na forma poética ou histórica, o que está em jogo lá no mundo grego, e agora também, é o que vale a pena recordar do mundo e do homem. O que vale recordar para ultrapassar a práksis e léksis para ganhar o estatuto de história e poesia? Porque o homem busca escrever para obter uma outra relação de experiência com a vida? Entre tantas respostas possíveis podemos dizer que o homem faz poesia ou história para penetrar no ser. Penetra-se mais quando o homem volta para si mesmo sem, no entanto deixar de penetrar naquilo que o circunda e que lha dá o limite de suas condições, ou seja, a natureza. É nesse duplo espelhamento que através da poesia e da história que o homem pode atravessar a ponte entre o instante e o eterno, mesmo sendo este eterno do tamanho da natureza do homem.
É nesse sentido que podemos dizer que a poesia e a história cravam uma memória dentro da consciência do homem para além de sua memória habitual. A memória cravada é a memória lapidada e inspirada daquilo que no instante soube transcender, numa espécie de ressonância, um sentido. Não é qualquer ato ou falo que se transforma, não é tudo que é digno da memória. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites, como nos diz Wilhelm Jensen. Podemos dizer que a memória do que é digno de ser recordado requer trabalho, mas não um trabalho qualquer: evocar a memória é antes evocar também os meios pelos quais o objeto ganha para si a coloração que realçara a plenitude que, imerso no instante, ele não pôde perceber ou realizar. A poesia e a história são os esmeros do homem para o homem. É nessa busca, nesse trabalho infindável, que o homem tem a chance de não permitir que haja uma lacuna entre o passado e o futuro, como bem apontou Hannah Arendt, que ele possa se fazer coeso e livre, fruto do passado e da memória.
A memória feita pela história e pela poesia é o grande tecido vital pela qual a vida, não esquecendo dos componentes de que ela é feita, preservando a sua matéria, pode restituir e iluminar, regenerar e tornar híbrida a existência que um dia foi perdida. Poesia e história como grandes seivas terrestres capazes de irrigar com plenitude os feitos e falas dos homens, presentes, passados, futuros.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Sofía e Rímini

Acabo de terminar O passado, obra do argentino Alan Pauls, e saio inquieto, não menos inquieto do que quando saí do cinema para ver a adaptação do livro pelas mãos de Hector Babenco. No primeiro encontro saí tão aturdido com a história, a relação ou não-relação de Sofía com Rímini, que fui direto na livraria comprar a sua seiva original. Demorei alguns dias para iniciá-lo e hoje, seis meses depois, concluo a obra. Mas esse ponto final é apenas simbólico: nada se conclui, nada termina.

Essa frase, se não a retirei do livro, encontra lá sua vizinhança. Poderia dizer que é uma frase de Sofía, o tema do livro, uma danação que descobrimos, é uma verdade, é a encarnação da memória, um postulado do amor...tantas coisas extraímos da ambição de Sofía. No final das contas, nem nos perguntamos mais se Rímini volta a amar Sofía ou não, se diante do final enigmático as portas estão para sempre fechadas ou abertas, se Sofía finalmente obtém o seu sucesso. De um certo modo sim, mas a grande questão, independente de Sofía, é que Rímini fracassa. Fracassa em esquecer, fracassa em tentar acelerar o tempo natural da memória. Fracassa em não querer saber o que será decantado ou não. É contra esse empreendimento louco que Sofía arma batalha. Não mais contra os novos amores de Rímini, mas contra esse ambição louca de esquecimento necessário que Rímini impõe a si mesmo para se desligar totalmente de Sofía.

Mas ela possui uma aliada: a vida. É ela que se interpõe entre a memória e o esquecimento. É ela que não para de reanimar as relações aleatórias que faz com que Sofía esteja na latência do presente. Sófia não é só fantasmagórica quando aparece para Rímini. Ele não volta para ela por causa de sua sedução e insistência. Há muito que Sofía desistiu de ligar, de procurar, de ser novamente tocada por Rímini. Vemos dois tipos de cansaços. Ambos se queixam, mas por motivos antagônicos. Sofía se cansa porque ela é o grande arquivo vivo que está condenada a lembrar de tudo. Rímini se cansa porque não para de fugir, de se esconder, para escapar de qualquer relação com o seu passado. Rímini é tão fantasmagórico quanto Sofía. Quem sofre mais, aquele que lembra ou aquele que esquece?

É dessa memória involuntária, não a mesma de Proust, se bem que possui relações, que Sofía extrai a sua teoria Mnemônica do Amor. É por ela, pela memória que a fagulha de amor pode ser reconstruída. De nada adianta seduções, reconquistas. O ser amado pode se ligar ou se desligar com facilidade. Agora da memória onde o amor habitou não. Aqueles que esquecem a parcela de vida que foi construída pelo amor, esses são irrecuperáveis. Aqueles que nutrem mesmo o ódio por quem amou, esses estão dispostos a ser inoculados novamente, neles ainda se mantém a matéria que o amor apossou, mesmo que desvirtuada. É pela memória, pela raiz, que é possível fazer nascer de novo o ecossistema do amor, qualquer amor. Quando Rímini diz que não consegue se lembrar de algum detalhe, que para Sofía é nítido, ela o considera morto e se desespera. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites...Lê num determinado ponto Sofía.Pois como extrair vida, fazer o caminho mudar de direção e fruto, de um tecido morto, sem memória? É a memória o lastro entre a matéria e o espírito, entre o amor e nada. Como reconstruir a membrana do amor sem a matéria de que ela é feita?

Nada se conclui, nada termina. Querendo ou não somos vítimas da vida que nos condena a lidar com aquilo que construímos, querendo ou não. Condenados a lembrar? Numa vertente Sartriana da liberdade. O homem está condenado a ser livre. O homem está condenado a lembrar. Condenado a conviver com aquilo que fomos, irreversíveis...é Sofía que mesmo condenada sabe ler os signos da liberdade de sua condenação.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Textura Noturna

Amadureci antes do meio-dia de minha vida.

Vou à rua: é como se não houvesse entes. Sou como o fruto tombado que degenera, carcomido pelos ventos e vermes da razão.

Sem sono ou sonho, como um aleijado fabricante de sua paralisia, rastejo para o deserto dos nunca iludibriados, onde o amor foi sempre a amarga sombra de um verso. Com o sol a corroer-me. Os olhos eternamente dilatados. Com a solidão a abandonar-me, tal qual uma hiena enfastiada que desdenha sua carniça destroçada.

Amadureci antes do meio-dia de minha vida.

Vou à rua: é como se ninguém me visse. Sou como o pombo tropeçado que espera no peito as migalhas da piedade e da debilidade.

Noite cega na qual estou e que não ouso imaginar uma nova aurora. Tateio em ti algo para exorcizar-me o crepúsculo, mas minhas mãos afogadas escorrem na expressão lisa de tua face que, assustada, foge como se sentisse a própria morte - mais escura que a noite -arrebatando-lhe as entranhas do silêncio.