sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Invenção do Passado

Um livro vale mais pelos caminhos que abre dentro de nós do que pelo seu enredo e desfecho. Vale mais pela interferência, pela pergunta que nele nos provoca e nos modifica e que dela faz com que derivemos para outro lugar. Nem sempre damos às inquietações propostas pelo autor a mesma resposta do seu personagem. O personagem leitor é outro, nós somos atingidos de forma diferente do personagem ficcional. É dessa forma que a problemática de se reinventar um passado, de se criar um passado, exposta no livro O vendedor de passados do Angolano, José Eduardo Agualusa, me afetou de forma totalmente diversa.



Para se querer um novo passado há-de se ter um passado odioso do qual não se deseja lembrar. Ou que ele seja insosso o suficiente para se desprezar todas as memórias. É o que fazem os personagens do romance quando pedem a Félix Ventura que invente um passado novo no qual se possa acreditar. São aqueles que precisam do passado, de uma reputação de nome, e que não souberam fazê-lo. Félix Ventura os dá. Mas até que ponto esse novo passado começa a influenciar a vida presente é que é a grande questão proposta no romance e que a vemos ser narrada através do olhar inusitado de uma osga (lagartixa incomum) que habita a casa de Ventura. A osga, personagem com reminiscência Kafkiana, parente próximo talvez de Odradek, vê com o seu olhar noturno José Buchmann apropriar-se do seu passado comprado com tal empenho e veemência que ele mesmo se modifica. O andar, o humor, a vestimenta, tudo muda quando ele se empenha em dar vida e tornar crível o passado. José Buchmann vai com tal empenho em busca do seu novo passado que quase o torna real, não pela descoberta do que pode ou não ser verdade na invenção, mas pela crença da reinvenção de si.



Até que ponto somos modificado por aquilo que fomos? Até que limite somos trancafiados na memória-invenção de nossa história? É nessa perspectiva que o romance nos dá a sua contribuição. Agualusa nos dá uma realidade que é modificado constantemente pela força do sonho e da memória. A memória e o sonho se relacionam com grande intimidade trocando fluídos entre si e entre a realidade. Buchmann sonha com a osga que o sonha e no sonho comum a realidade parece ser mais real. A força do sonho é tão grande quanto a da memória. E nós sabemos como o sonho participa da realidade, modificando-a, fazendo com que nós busquemos o que foi sonhado. Agualusa quer que sejamos modificados pela força da memória, que sejamos atingidos da mesma forma que no sonho. O que está em jogo é também a certeza do que lembramos. Será que temos a total certeza do que a nossa memória nos dá? Será que também não inventamos para nós mesmos memórias que com o passar do tempo torna-se mais real que o próprio passado? O sonho pode ser feito de memória da mesma forma que a memória pode ser feita de sonho. Da mesma forma, o mundo objetivo das coisas é afetado pela nossa subjetividade. E quem é que poderá dizer que a objetividade é mais real que a subjetividade? Quantas vezes nos pegamos em sonhos de vigília, em subjetivações, em pensamentos, que no ato é bem mais real que tudo o mais que está a nossa volta? Às vezes, temos a impressão de que só o subjetivo da à realidade a verdadeira parcela de objetividade, não? Por isso, Agualusa intercala os capítulos intitulados Sonhos, e cada vez mais vemos tudo se embaralhar, conversas reais dentro de sonhos, percepções que feitas no sonho são dadas como verdadeiras na realidade.


Lá pelas tantas, José Buchmann diz: "Félix Ventura diz que acredita em tudo quanto parece impossível - e que é por isso que acredita em si..." Agualusa nos impõe um grande desejo: a capacidade de reinventarmos o nosso presente, o nosso passado e o nosso futuro, com a força do impossível. A memória e o sonho são coisas impossíveis, mas tão reais quanto a realidade, que às vezes de tão possível, carece de realidade. Como diz José Buchmann: "A verdade é improvável. Se fosse exacta não seria humana." Agualusa nos convida a participar um pouco mais da realidade através de nosso sonho e de nossa memória.