sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Cegueira poética

Havia cegado de tanto ver o mundo. Olhava, olhava, coçava a vista com desespero. Não era tudo branco, nem negro.Não, não, estava tudo ali, os móveis, a sua mulher, as nuvens e os pássaros dentro da janela,a poeira no chão. Enfim, tudo estava ali, na sua frente, representado. Mas já não conseguia extrair nada de nada. Quem dizia o que para ele? Nada. E ele com os seus olhos esbugalhados via menos que os cegos, que Borges, que Homero, que Tirésias. Parecia estar imerso no vácuo da linguagem, parece até que nele já nem havia linguagem. Era sempre um balbucio, um ruminar, umas frases feitas sobre tudo. Dentro dele já não havia relação entre as coisas.


Tentava lembrar das imagens que até então viu. E eram nada mais do que fotografias de estrangeiro.Foi até o espelho para tirar a grande conclusão. Não se viu. Ou melhor, ele estava ali todo, nu, mas não sabia quem era. Era uma cegueira poética.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

De um certo Platonismo no Amor

E ainda dizem que a filosofia está distante da realidade. Distante é talvez a influência de um certo pensamento que não cansa de agir sobre a realidade. Assim, pois, pensamos e sentimos de forma menos originária do que acreditamos. Um exemplo?

Quem se atreve a dizer que nunca amou alguém platonicamente? No que consiste isso que tão comumente chamamos Amor Platônico e que não cessa de nos arrebatar nas nossas experiências afetivas? Que diabos tem a ver o filósofo grego com esse sentimento que agora pulsa em mim como verdade e como particularidade quando penso na mulher amada? E eis Platão no meio do meu amor, num intervalo de quase 2.500 anos, com a cara mais descarada do mundo, segurando vela para nos iluminar...e que sombras ela proporciona...

Geralmente dizemos do Amor Platônico o mais latente, aquilo que salta logo aos olhos quando pensamos num ser que ama platonicamente, ou seja, um sentimento de exagero. Exagero avassalador, desmesura de um sentimento que não tem forma, que não cabe dentro da gente. Sofremos, choramos, mal comemos, mal dormimos, mal vivemos. E o pensamento e o coração imersos numa certa fúria de sonhos e idéias. Como diz Comte-Sponville, "Aliás, o que é estar apaixonado senão cultivar certo número de ilusões sobre o amor, sobre si mesmo ou sobre a pessoa de pela qual se está apaixonado?" É o exagero que marca, é uma dose muito alta de romantismo, o Amor Platônico. Mas por quê o exagero ao pensar no ser amado? E aqui está o rasgão que Platão faz na realidade. Só exageramos no amor porque idealizamos.

No banquete, obra do filósofo onde se discute o amor, existem duas vozes que repercutem: Aristófanes e Sócrates. Aristófanes reside em nós quase como domínio público. Quer ver? Ele aparece no Banquete nos contando um mito de como éramos: "Outrora nossa natureza não era como é hoje, era bem diferente. Cada homem constituía um todo, de forma esférica, com costas e flancos arredondados, tinham quatro mãos, o mesmo número de pernas, dois rostos totalmente idênticos num pescoço perfeitamente redondo, mas uma cabeça única para o conjunto desses dois rostos opostos um ao outro; tinham quatro orelhas, dois órgãos de geração e todo o resto e, conformidade." Eram três os gêneros da espécie humana: os machos, contendo dois sexos masculinos; as fêmeas, dois sexos de mulher; e os andróginos, com o sexo masculino e feminino. A força dessa espécie era tão imensa que resolveram desafiar os Deuses. Como punição para o desafio, Zeus os dividiu ao meio num corte vertical. Desde então, o destino é encontrar a nossa parte separada que irá nos completar perfeitamente. Encontrar a nossa alma gêmea, a nossa cara metade, que nos devolverá o êxtase de sermos Um novamente, total. O amor para Aristófanes seria essa completude,uma fusão, esse júbilo ao encontrar o ser que desde sempre é também nós mesmo.

Platão, na voz de Sócrates, refuta Aristófanes. O sentimento de amor, esse com que buscamos a nossa metade, não pode ser nunca completude. É incompletude. Só buscamos no outro o que nos falta. Só desejamos o que não temos. Se estamos sempre fissurados, esse sentimento que nos movimenta em direção ao outro é o Amor. Amor por nós mesmos, amor por aquilo que não somos e que temos que reconstituir. Mas, na busca por essa totalidade, a própria busca é o sofrimento, mas um sofrimento ligado a um certo prazer de conquista, de sonho. Porém, Eros nunca está saciado.

O ponto comum entre as duas teorias está talvez na idealização. Seja sendo completude ou incompletude, o que nos move é uma certa idéia, um certo ideal que temos de alcançar através da pessoa amada, através do amor. Um certo paraíso. E eis aqui também o mito da caverna para reforçar a grande luta de Platão em nos conduzir para um mundo Ideal. O homem libertado de seus grilhões onde só via sombras, agora vê a luz, vê a verdade das coisas. O amor platônico não seria um estado que buscamos onde vemos um mundo com mais verdade, com mais clareza,com mais harmonia, onde tudo é menos vacilante, como a sombra que não cessa de oscilar, do que é? A busca pela completude, essa beleza solar de tudo, não seria um estado de imutabilidade onde reinaria a paz total?

Não podemos deixar de elogiar a grande alegoria que faz Platão e o caráter revolucionário desse mito. O homem libertado, o homem que não se permite terminar a busca de um mundo melhor - Ideal - é o elogio que Platão parece fazer. E talvez seja essa a imagem mais forte que retemos dele, do homem que não se aliena numa visão com antolhos, que olha pros lados e pra trás, sempre almejando subverter o que está posto. Bem sabemos como precisamos idealizar nos campos de nossa realidade que já estão secos e infrutíferos.

Toda idealização é uma violência contra o real.

Mas me parece que, nos domínios do amor, essa idealização do outro soa um pouco desrespeitosa. Nesse rasgão que Platão faz na realidade, pela idealização, ele deixa de legitimar aquilo que existe por si mesmo como o estrangeiro da nossa idealidade. Porque o outro não pode possuir a sua própria força, como algo que existe por si e para si? Uma sombra também existe para si e está tão impregnada de verdade como a luz. Nessa nossa busca do amor idealizado não desejamos o outro como ele é, nos seus devires e singularidades, mas como representação de nós mesmos, do ser ideal que um dia montamos para nós. E quantos amores já perdemos nessa idealização! Quantos! O outro para nós carece de ser ele mesmo! O outro é sempre violentado em nome de uma idealidade! E o quanto de real matamos, e quantos outros já matamos, quantas realidades! A idealidade pelo que violenta também impossibilita outras realidades que podem nascer fora de nós.

E o ser platônico no final de sua idealização frustrada - o outro por mais perfeito que seja frustra a idealização... - no fim da relação que não deu certo ainda diz com um certo ressentimento: você não era como eu imaginava, me decepcionei com você, pensei que você era uma coisa mas é outra...

O outro me parece ser o lugar que não permite fincar bandeira. O outro não se deixa dominar. E podemos amar a outra pessoa assim como ela é? Sim. O outro, indeterminado, alheio ao que conhecemos, novo, singular, real (mais real do que qualquer idealização) nos permite um júbilo pelo simples fato de exitir."Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa", como nos lembra Pessoa. A paissagem que não possui o homem e nos encanta. Inexorável e apaixonante.

E o amor que é também da ordem do real não se permite idealizar. O amor é sempre outro. O outro é o real que violenta a idealização.

O que se passou?

Nessa alma conturbada, movida a turbilhões, encontrava raros momentos de plenitude. Quando as suas ações eram traços de expressionismo, quando o agir de sua alma era um tufão que arrastava café da manhã, banho, bom dia, a sua grande fuga era abandonar-se, mas como quem segura o último laço de corda para não cair no abismo. Mas ontem - que dia foi ontem? - o que se passou? Não tinha nada daquilo. Se pouco, se muito, se exato, não sabia. Se eu, se outro, se quem, não sabia. Mas naquele marasmo do dia, mansidão da alma e da terra, a lágrima escorria - como poucas escorreram até então, de um modo tão delicado que parecia pintada por um artista sem mãos, sem textura de pele e peso - enquanto via a chuva correr transversa por entre as árvores, no pé da montanha. E ao fundo, uma melodia de Schubert compunha a cena. Se cansaço, se vitória, se acaso, não sabia.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O limiar da quebra

Constatação, sensação pura, erro, paranóia, não sei bem o que é isso. Mas algo em mim se faz presente. Quando tudo está bem é que na verdade parece não estar. Duvido constantemente de uma harmonia uníssona que dure. Será isso também uma espécie de pessimismo? No mar calmo dos fatos, onde tudo parece parado - e que realidade é essa onde está tudo parado?- está sempre latejando algo submerso que fatalmente detonará.Talvez uma realidade mais próxima do orginário, menos humana, racional e civilizatória, beirando o caos. O limiar da quebra é sempre este agora. E a impressão de que esperamos mesmo essa quebra pela vida inteira. Numa preparação para a expiação. Numa noite silênciosa imersa no sonho.