sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Depoimento

Para Nádia

Tenho um carinho muito especial por você. É tanto que acho que não cabe em mim. Não sei se meu coração é pequeno demais ou se tudo isso é mesmo maior do que um corpo pode suportar. O fato é que tenho andado ofegante, suspirando alto, como se o corpo quisesse dizer para alma que existe nele algo bonito demais e que seria absurdo mantê-lo escondido, preso nas bordas da pele. E na verdade, o afeto tem razão: por quê ocultar um carinho tão grandioso? Por quê não mostrá-lo e dá-lo para o mundo? São tempos difíceis em que as pessoas andam cismadas de dizer que gostam, que amam, com medo de sentir e sofrer e que tudo se perde no silêncio; e às vezes tudo se perde porque foi dito com temeridade e indiretamente que tudo se perdeu na indecisão das coisas. E quando finalmente tomamos coragem para dizer, já é tarde demais, inútil, vã qualquer palavra.

Ninguém sabe ao certo porque um sentimento nasce dentro da gente. Não há lei para os sentimentos. Neles o que há é a verdade de estar existindo. Sinto, logo existo. E constato em mim essa verdade que me liga a ti. Como diz no livro que tem teu nome, a beleza é convulsiva, revolucionária, ou não é nada. E pela sua beleza eu já fui tocado, convulsionado, revolucionado.

Existe uma dupla consequência nesse ato de gostar de alguém: é um duplo movimento que ele provoca, dupla exaltação da vida. O primeiro é quando vemos a vida mais iluminada, tudo brilha, tudo cheira a intensidade, tudo é muito mais. O segundo é quando, tocado por essa exuberância, somos convocados a devolver à vida o mesmo brilho. Tudo se reveste de uma bela potência de paixão. E tudo por causa de um único ser, uma única pessoa no meio de tantas.

Já falei e não cansarei de repetir que você é como uma florzinha para ser cuidada, protegida, amada, adorada, nesse nosso mundo cão. Para que permanece em ti essa sua beleza, essa candura, esse sorriso envergonhado que adoro tanto, o meu desejo é cultivar-te com o que há de melhor em mim. E sempre, longe ou perto, tentarei fazer com que sinta essa paz que você me dá sem saber como e porquê, gratuitamente, como só as coisas mais belas conseguem ser e dar na simples ação de estar existindo.

Que meu coração jamais pense em deixar de te adorar...o coração se pudesse pensar pararia...
Beijos nos olhinhos que são tão lindos...

Te adoro minha pateta...

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Alongamento com Quintana

Tenho essa ambição de querer ler todos os livros do mundo. Pois Bem. Nessa fúria inebriante de querer engolir o mundo com uma boca só é necessário um certo método. Nem tudo consegue adentrar nessa boca pequena que vos vala. Tratando-se de conhecimento podemos dizer que existem certos alimentos espirituais totalmente indigestos, ou que no mínimo precisam de uma boa sessão de corte para que se engula as partes e uma preparação espiritual, um ascetismo mesmo para poder nos permitir apreender tudo. Ninguém entra numa churrascaria impunemente sem preparar previamente o estômago e a alma que também se inflará. Não se sairá igual. Da mesma forma e muito pior acontece com a arte e a filosofia, é também prudente preparar a alma e o estômago, sim, o estômago!, para cada inserção nesses livros onde escorrem gorduras de conhecimento. Assim: quem come um touro inteiro chamado Dostoiévski? Alguém encara, assim, sem mais nem menos, numa singela tarde de domingo uma ópera de Wagner ou uma “refrescante” dose da filosofia de Nietzsche? Duvido que não passe mal depois, duvido. Pode até causar vertigem irrecuperável! Até que algumas, nesse nosso mundo insosso, são muito recomendáveis...

Pois bem. Hoje chove. E minha alma anda muito suscetível a abalos sísmicos sem aviso prévio. Ela está precisando de flexibilidade nas estruturas para não desmoronar em qualquer encontrão com a dor da terra. Pensando nisso e agarrado a essa minha ambição filosófica de mundo, antes de começar a ler Nietzsche e Dostoiévski hoje, principiei o dia lendo um livro do Mário Quintana, A Vaca e o Hipogrifo, com o pretexto de alongar as idéias antes de entrar na maratona filosófica. Acabei me retendo nele, devorando-o e descobrindo uma certa alegria, um certo humor da genialidade que faz com que percorramos um caminho árduo na mais calma plenitude. O livro consiste de pequenas trechos inteligentíssimos e humorados sobre temas variados. E quem convive comigo sabe: tenho essa teoria, nem sei se é teoria, e provavelmente não é também original, tá, ok, essa constatação de o gênio nos faz sorrir até mesmo da dor, que uma idéia genial tem como consequência última a gargalha diante do espanto. É isso que constato em Quintana, quando o lemos brota um inocente sorriso de criança que brilha ao ver o mágico tirar o coelho da cartola.

O que aconteceu foi isso. Fiquei o dia inteiro lendo Quintana e quando me dei conta já estava em outra etapa do ensinamento, respirando uma atmosfera muito mais animadora. Fui do alongamento intelectual ao trabalho duro das idéias sem sentir passar nem o tempo nem a dor. A arte de Quintana, além da poesia, é a da condução do espírito com leveza e minimalismo (estética que anda me atraindo, com o pouco dizer muito...). Mas quem disse que o poeta não é também um dançarino que sabe se conduzir com maestria no ritmo da vida e na melodia das idéias? Nessa dança acabei sendo conduzido por ele, e fui tão bem conduzido, que acabei aprendendo alguns passos de seu estilo, sem modéstia.

domingo, 3 de agosto de 2008

Tagarelice

Falar é fácil. Falar é fácil demais. Depois de toda ação então, nem é mesmo necessário mais língua. A frase solta que envolve a fala faz sem aparato o vôo necessário para sair da caverna para habitar a amplidão do mundo. A tagarelice está ai a todo vapor, na TV a toda hora, nos botequins de cada esquina, nas horas perdidas de ócio dentro de uma casa.

Escrever também e fácil. Com um pouco mais de trabalho monta-se uma frase, um texto, e de repente está instaurado a mesma tagarelice da fala, o mesmo monturo de pensamento, a mesma náusea de nhenhenhés, com que antes cabia a boca expandir. Com a fala se expurga a culpa de não ter feito antes o que poderia estar e que agora é reclamado. Milhões e milhões a toda hora.

Bêbados sem álcool nenhum dizem as coisas mais sem sentido que nem o personagem mais lúcido de qualquer lugar saberia pronunciar tão bem. Com a tagarelice escapa-se do tédio. Sim, é uma boa forma de passar o tempo, construindo castelos de areia que na mesma hora que montados escorrem pelos dedos.

E assim o mundo prossegue amontoando merda atrás de merda só para ter a impressão de que falando a vida se torna menos fétida.

Eu quero é ver quem tem coragem de silenciar para extrair desse silêncio a frase que ultrapassará todas. Eu quero é ver quem tem coragem de interromper o fluxo da frase, o fluxo do pena e da escrita, para no momento seguinte extrair uma poesia que reverberá. O mundo está lotado de palavras inúteis. E uns ainda reclamam o estatuto de obra de arte em todas as áreas. Nem Duchamp que deslocou o estatuto do que é arte de forma que ainda nos dá trabalho tagarelava tanto. Na verdade Duchamp sabia das coisas. Não é de se espantar que a sua obra ainda esteja nas veredas dos enigmas. Enigmas e silêncios.

É necessário lançar a palavra como uma flecha diante do alvo, como numa essência minimalista. Onde se entrevê entre o tão pouco um mar de entrelinhas.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Poesia, História, Memória

No átimo de tempo onde o homem possui uma consciência, ele entrevê a sua finitude, não como espécie, mas como indivíduo, e é também a partir dessa consciência de si que o homem pode vislumbrar uma tentativa de ultrapassar essa linha efêmera de vida que o relega ao destino do esquecimento. Algo no homem sugere uma outra forma de permanência que não aquela sugerida pela circularidade da vida das coisas da natureza que, tal como nos aponta Hannah Arendt, no mundo grego, conferia um status de imortalidade. O homem contesta esse caráter de imortalidade construindo para si um material que preservaria, no sentido e até onde no tempo o homem perdurasse, os feitos e as falas significativas, dignas da memória, na qual ele pudesse angariar para si uma sabedoria e uma experiência.
É de grande valia a análise de Hannah Arendt sobre as questões da origem da poesia e da história em seu livro Entre o passado e o futuro, principalmente quando ela nos relembra a passagem onde Odisseu escuta os seus próprios feitos na Guerra de Tróia na corte dos Feácios. Estaria ali na Odisséia a origem da história e da poesia condensadas em uma passagem? Mais do que apenas um grande exemplo, o que podemos extrair desse trecho é o caráter incontestável de busca no mundo grego pela preservação da ação e da fala, seja através da mitologia, da história, da poesia ou da filosofia. É lá que o homem passa a construir uma estrutura lingüística em que ele pode reter uma sabedoria de vida que pode se levado a outras vidas e tempos.
Seja na forma poética ou histórica, o que está em jogo lá no mundo grego, e agora também, é o que vale a pena recordar do mundo e do homem. O que vale recordar para ultrapassar a práksis e léksis para ganhar o estatuto de história e poesia? Porque o homem busca escrever para obter uma outra relação de experiência com a vida? Entre tantas respostas possíveis podemos dizer que o homem faz poesia ou história para penetrar no ser. Penetra-se mais quando o homem volta para si mesmo sem, no entanto deixar de penetrar naquilo que o circunda e que lha dá o limite de suas condições, ou seja, a natureza. É nesse duplo espelhamento que através da poesia e da história que o homem pode atravessar a ponte entre o instante e o eterno, mesmo sendo este eterno do tamanho da natureza do homem.
É nesse sentido que podemos dizer que a poesia e a história cravam uma memória dentro da consciência do homem para além de sua memória habitual. A memória cravada é a memória lapidada e inspirada daquilo que no instante soube transcender, numa espécie de ressonância, um sentido. Não é qualquer ato ou falo que se transforma, não é tudo que é digno da memória. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites, como nos diz Wilhelm Jensen. Podemos dizer que a memória do que é digno de ser recordado requer trabalho, mas não um trabalho qualquer: evocar a memória é antes evocar também os meios pelos quais o objeto ganha para si a coloração que realçara a plenitude que, imerso no instante, ele não pôde perceber ou realizar. A poesia e a história são os esmeros do homem para o homem. É nessa busca, nesse trabalho infindável, que o homem tem a chance de não permitir que haja uma lacuna entre o passado e o futuro, como bem apontou Hannah Arendt, que ele possa se fazer coeso e livre, fruto do passado e da memória.
A memória feita pela história e pela poesia é o grande tecido vital pela qual a vida, não esquecendo dos componentes de que ela é feita, preservando a sua matéria, pode restituir e iluminar, regenerar e tornar híbrida a existência que um dia foi perdida. Poesia e história como grandes seivas terrestres capazes de irrigar com plenitude os feitos e falas dos homens, presentes, passados, futuros.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Sofía e Rímini

Acabo de terminar O passado, obra do argentino Alan Pauls, e saio inquieto, não menos inquieto do que quando saí do cinema para ver a adaptação do livro pelas mãos de Hector Babenco. No primeiro encontro saí tão aturdido com a história, a relação ou não-relação de Sofía com Rímini, que fui direto na livraria comprar a sua seiva original. Demorei alguns dias para iniciá-lo e hoje, seis meses depois, concluo a obra. Mas esse ponto final é apenas simbólico: nada se conclui, nada termina.

Essa frase, se não a retirei do livro, encontra lá sua vizinhança. Poderia dizer que é uma frase de Sofía, o tema do livro, uma danação que descobrimos, é uma verdade, é a encarnação da memória, um postulado do amor...tantas coisas extraímos da ambição de Sofía. No final das contas, nem nos perguntamos mais se Rímini volta a amar Sofía ou não, se diante do final enigmático as portas estão para sempre fechadas ou abertas, se Sofía finalmente obtém o seu sucesso. De um certo modo sim, mas a grande questão, independente de Sofía, é que Rímini fracassa. Fracassa em esquecer, fracassa em tentar acelerar o tempo natural da memória. Fracassa em não querer saber o que será decantado ou não. É contra esse empreendimento louco que Sofía arma batalha. Não mais contra os novos amores de Rímini, mas contra esse ambição louca de esquecimento necessário que Rímini impõe a si mesmo para se desligar totalmente de Sofía.

Mas ela possui uma aliada: a vida. É ela que se interpõe entre a memória e o esquecimento. É ela que não para de reanimar as relações aleatórias que faz com que Sofía esteja na latência do presente. Sófia não é só fantasmagórica quando aparece para Rímini. Ele não volta para ela por causa de sua sedução e insistência. Há muito que Sofía desistiu de ligar, de procurar, de ser novamente tocada por Rímini. Vemos dois tipos de cansaços. Ambos se queixam, mas por motivos antagônicos. Sofía se cansa porque ela é o grande arquivo vivo que está condenada a lembrar de tudo. Rímini se cansa porque não para de fugir, de se esconder, para escapar de qualquer relação com o seu passado. Rímini é tão fantasmagórico quanto Sofía. Quem sofre mais, aquele que lembra ou aquele que esquece?

É dessa memória involuntária, não a mesma de Proust, se bem que possui relações, que Sofía extrai a sua teoria Mnemônica do Amor. É por ela, pela memória que a fagulha de amor pode ser reconstruída. De nada adianta seduções, reconquistas. O ser amado pode se ligar ou se desligar com facilidade. Agora da memória onde o amor habitou não. Aqueles que esquecem a parcela de vida que foi construída pelo amor, esses são irrecuperáveis. Aqueles que nutrem mesmo o ódio por quem amou, esses estão dispostos a ser inoculados novamente, neles ainda se mantém a matéria que o amor apossou, mesmo que desvirtuada. É pela memória, pela raiz, que é possível fazer nascer de novo o ecossistema do amor, qualquer amor. Quando Rímini diz que não consegue se lembrar de algum detalhe, que para Sofía é nítido, ela o considera morto e se desespera. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites...Lê num determinado ponto Sofía.Pois como extrair vida, fazer o caminho mudar de direção e fruto, de um tecido morto, sem memória? É a memória o lastro entre a matéria e o espírito, entre o amor e nada. Como reconstruir a membrana do amor sem a matéria de que ela é feita?

Nada se conclui, nada termina. Querendo ou não somos vítimas da vida que nos condena a lidar com aquilo que construímos, querendo ou não. Condenados a lembrar? Numa vertente Sartriana da liberdade. O homem está condenado a ser livre. O homem está condenado a lembrar. Condenado a conviver com aquilo que fomos, irreversíveis...é Sofía que mesmo condenada sabe ler os signos da liberdade de sua condenação.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Textura Noturna

Amadureci antes do meio-dia de minha vida.

Vou à rua: é como se não houvesse entes. Sou como o fruto tombado que degenera, carcomido pelos ventos e vermes da razão.

Sem sono ou sonho, como um aleijado fabricante de sua paralisia, rastejo para o deserto dos nunca iludibriados, onde o amor foi sempre a amarga sombra de um verso. Com o sol a corroer-me. Os olhos eternamente dilatados. Com a solidão a abandonar-me, tal qual uma hiena enfastiada que desdenha sua carniça destroçada.

Amadureci antes do meio-dia de minha vida.

Vou à rua: é como se ninguém me visse. Sou como o pombo tropeçado que espera no peito as migalhas da piedade e da debilidade.

Noite cega na qual estou e que não ouso imaginar uma nova aurora. Tateio em ti algo para exorcizar-me o crepúsculo, mas minhas mãos afogadas escorrem na expressão lisa de tua face que, assustada, foge como se sentisse a própria morte - mais escura que a noite -arrebatando-lhe as entranhas do silêncio.

domingo, 22 de junho de 2008

Terceira Fatalidade

Não há nada mais triste do que escrever sobre o que poderia ter sido. Às vezes a escrita se faz com uma coragem tardia e inútil.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Íntimos

Para Renata

Faz uns três anos que não nos víamos, não é isso? E quem, ontem, ao olhar para nós dois sentados, um diante do outro, numa lanchonete qualquer da zona sul da cidade, poderia medir essa quantidade de tempo absurda que passamos sem nos ver? Estávamos lá, duas almas atentas, o olhar fixo para não perder nada do outro, desprezando todo o resto do mundo que nos rodeava, os corações vibrantes, as frases confessionais extraídas do melhor da intimidade. Com tudo isso era impossível alguém afirmar o contrário disso: eram melhores amigos, irmãos talvez, amantes ávidos de saudade, duas pessoas que passaram a vida inteira juntos sem jamais se desgrudar. Emitíamos, certamente, uma espécie de clarão.

E era isso o que constatávamos sempre, segundo após segundo, frase após frase: que jamais nos separamos, desprezando toda e qualquer assertiva da materialidade e do espaço. Éramos dois corpos que ultrapassavam as leis da física, unidos pela sintonia dos afetos, por uma sensibilidade dilatada que percebe o mundo além do visível, com nossos olhares agudos, com nossas almas despertas ás mínimas sutilezas da vida, almas capazes de extrair a tristeza mais terna ou a beleza mais sublime de pequenas partículas da realidade. Se um rosto, um cão, uma pedra, pouco importava, as coisas nos atingiam por lugares inimagináveis, penetrando-nos com o seu sêmen, e no mesmo instante sofríamos as transformações de suas interferências, sutis, mas fundamentais, que pouco a pouco, se juntavam a tantas outras, que não menos arbitrárias a nossa vontade, estavam acumuladas na nossa alma sempre bem educada e gorda para qualquer gota de vida, boa ou má. Éramos sempre dois seres grávidos, grávidos inclusive do vazio que na sua metafísica nos atingia com a força eqüilátera de qualquer matéria.

Constatávamos as soluções e os problemas daqueles que sentem demais a vida. E até percebemos que essa sensibilidade microscópica nos provocou – talvez no mesmo dia e na mesma hora – efeitos terríveis para os nossos corações. Será que foi a mesma visão que palpitou demais o nosso coração a ponto de diagnosticarmos uma taquicardia? Será que foi a mesma dor do mundo que nos atingiu – eu em pleno centro do Rio e você numa tarde abafada no centro de Buenos Aires – e que nos fez desmaiar sem hesitação? Talvez estivéssemos percebendo a mesma catástrofe cotidiana, talvez quiséssemos dizer a mesma coisa, compartilhar com alguém o mesmo sopro de vida imenso que nos impregnava, e o resultado de não acharmos meios ou a pessoa certa, capaz de, sem o auxílio das palavras, entender tudo o que não dizíamos, numa intimidade eterna que vislumbra logo a intenção antes de qualquer gesto, foi ver a nossa saúde ameaçada, envolvida num desses paradoxos irônicos do destino onde os extremos, apenas por um momento, se aproximam e se transmutam. E nós, vítimas dessa sensibilidade recrudescida, estávamos agora dispostos a condená-la por tudo que ela nos dava. Inventávamos até uma sensibilidade doentia.

Éramos, então, obrigados a dar a esse amálgama um pouco de lucidez para não sofrermos demais. Porque o sentir acaba nos impelindo a uma depuração. No seu auge, ele não mais se contenta com aquilo que simplesmente chega e nos atravessa, mas exige uma perseverança da forma, onde podemos transformar o que sofremos em agradecimentos, pois nessa instância já saberemos ser todo o ato e todo o sentimento que nos atinge, fecundados de uma cópula onde o que nasce, dessa comunhão com a vida, é algo que toca a atmosfera de uma obra de arte (não é acaso a nossa afinidade com a arte).

E não é o que fazemos, o que não paramos de fazer, senão obras de artes de nossas impressões? Pois os teus desenhos e os meus textos não deixam de ser reflexos e reflexões sobre tudo aquilo que nos afeta. E mesmo o que talvez não ganhe a expressão de alguma forma artística, como talvez algum dos momentos em que vivemos na intimidade de nosso mais puro prazer (uma tarde de domingo onde fechamos os olhos para relembrar o exato momento em que um amigo querido nos presenteou com um livro e sua dedicatória; ou numa noite escura em que esse amigo tenta relembrar com toda a sua força a pergunta feita - dela para um professor antigo - que irá desvendar a sua agonia), é rodeado por um halo de poesia. Poesia essa à flor da pele, da nossa pele, que nos condena e nos expurga para um destino que não se contenta jamais com a banalidade de ser só ele. É que o ser é sempre menor que o não-ser. E nesse afã de não cabermos em nós, de ultrapassar o que nos ultrapassa, conseguimos, mesmo que com sofrimento, chegar a essa parcela de vida rara, rarefeita, onde podemos gozar uma serenidade singular. Serenidade fruto desse encontro, dessa intimidade crua, onde somos um e todos. Sensíveis e totais. Ecos das coisas e dos seres. Íntimos de tudo, inclusive de nós mesmo, eu e você, nós dois, que como corpos estávamos diante um do outro numa lanchonete perdida na zona sul do Rio de Janeiro. Mas que como almas éramos íntimos também da pedra, do mar, da criança, da morte, da arte, da amizade, do sol, do tempo, do afeto, do amor, do infinito...

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Lua Catalã

Sonhei com ela, onde só eu a via. Lua única que carregava consigo uma névoa (sem semelhança com nuvens). Todos só a perceberam quando lhe cravei o nome, que me veio também único: Lua Catalã. Não sei mais nada sobre ela, os seus efeitos, a sua origem, o seu sentido. Ainda bem que não me perguntaram nada pois não saberia dizer nada além de seu nome. Imersa no meu sonho, translúcida no meu sonho, consta para mim como uma daquelas poesias que permanecem obscuras, invariáveis a qualquer explicação, durante toda a vida. A Lua Catalã carrega consigo a sua névoa, espécie de vidro embaçado pelo nosso hálito quando nos aproximamos.

terça-feira, 15 de abril de 2008

O Guia e a Bússola

O nosso herói, entre todos os homens de todos os tempos, era o único que possuía o endereço de casa - e era de lá também que se originavam todos os homens. Ele, não menos homem nem mais herói que os demais, era também obrigado a percorrer – até a sua morte – aquilo que chamavam de destino. Não sabemos o real motivo, mas o nosso herói obtendo o endereço nas mãos – que todos os outros queriam possuir, dos mais sábios aos mais tolos – não o mostrou a ninguém. Certamente, não era caso de egoísmo ou vaidade. È que a mensagem não possuía valor algum tão logo a sua casa se tornava mais distante e ele começava a cravar os pés e os olhos na realidade do horizonte.

Durante o seu vagar ininterrupto via os outros homens, com seus olhos lacrimosos e suplicantes, procurarem insaciavelmente aquilo que ele continha. Uns chegavam a interromper os próprios passos com medo de errar o caminho, outros retrocediam e se tornavam um pouco mais infantis. Mas o nosso herói errava como todos os outros e prosseguia. A mensagem, contendo somente o lugar de onde vinham, não apontava para lugar nenhum. O nosso herói, na medida em que o tempo e o movimento se dilatavam, via-a cada vez mais ilegível e inútil.

Era tão grande a esperança que os homens depositavam na mensagem que, talvez com medo de desiludi-los e colocá-los assim numa outra ilusão é que o nosso herói – e ele só era herói por isso – ocultava até o insuportável a mensagem. Carregava consigo o mal-entendido.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Ausência da referência

Observo da janela as árvores, os pássaros. Vejo-os sempre além do que são: vejo na memória algum semelhante outono numa cidade antiga de minha juventude, o mesmo clima, o mesmo farfalhar das folhas, o mesmo canto do pássaro. Não sou capaz de dar àquilo que vejo uma liberdade plena. O presente é sempre reenviado a algo que não pertence a ele. Dou outra cor ao pássaro e ao canto como se eles precisassem, para existirem, da força de minha imaginação. Faço-os virarem fantasmas em preto e branco tão logo os vejo com os olhos de minha recognição. É óbvio que eles existem plenos sem o aval de minha memória. A verdadeira visão é esse pássaro, no pouso e no canto, sem adição, no seu futuro movimento que não adivinho, no seu invisível vôo melódico, na sua cor desafiada pelo sol que me atinge extremamente forte e singular, una e múltipla.

domingo, 6 de abril de 2008

Referência da ausência

Recordo o estado de solidão em que vivia ao caminhar pelas ruas daquela cidade antiga de minha juventude, mas não lembro a quem aquele estado de solidão se referia. Que ausência? Nada parece ter restado daquele sentimento desesperado senão aquelas ruas amontoadas de gente, o entardecer fino e lúgubre, o rio e sua ponte, e as lojas que não me diziam absolutamente nada. Era somente um andar perdido, ressentido, ensimesmado. E a quem ele se dedicava? A quem eu dedico essas palavras?

De uma certa maneira, a dimensão exterior do sentimento vai se esvaindo de nossa memória e realidade, ficando somente em nós, talvez, uma cidade inóspita,um olhar perdido entre as coisas, um quarto escuro e húmido pelas nossas lágrimas, e nada mais. Mas a paixão e o amor...que paixão, que amor?

quinta-feira, 27 de março de 2008

Perdas e ganhos

Com a arte e filosofia a coisa funciona mais ou menos assim: você não perde nada por não ter encontrado, mas a cada encontro você ganha uma vida e um mundo.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Laguinha (Um conto para João)

(E de tão inebriado pelas suas Estórias e linguagem, resolvi fazer um conto para alegrar meu amigo.)


Aqui, longe do sertão, também existe um Menino. E os bichos, reduzidos, são de um pequeno sítio nos confins da cidade. Algumas galinhas, patos, gansos. E - que absurdo! - alguns passarinhos presos. O menino tinha pena deles. Falava para o pai, quando este reclamava que há tempos não ouvia o canto do curió: “Para que, ou quem, o pobre do bicho vai cantar?! Ele não pode namorar ninguém na gaiola! Ele é igual a gente, a gente só gosta de cantar quando está feliz, quando tem gente perto, quando pela rua a gente está alegre para ir num monte de lugar...Preso assim o passarinho não tem vontade de cantar...Eu quando fico de castigo, trancado no quarto, não tenho vontade de cantar...fico quieto.”
Adorava observar os bichos. Gostava mais das galinhas. E tinha uma, a menor do galinheiro, que sempre vinha para perto dele ciscar. Pertinho. Até migalhas na palma da mão do menino ela vinha bicar. Ela tinha até nome, a única: Laguinha. Quando ele era bem menorzinho, o menino não podia ver uma galinha que gritava: “Olha mãe! É a laguinha! A laguinha!” Depois, já um pouco crescido, a mãe lhe contou o episódio, e ele gostou tanto do seu erro que resolveu mantê-lo em algum lugar. O menino alimentava Laguinha todo dia no quintal.
Até que um dia o pai, temeroso da violência que se aproximava, vinda da cidade, decidiu compra um cão. Era um Pastor Alemão, de raça pura, para amedrontar os outros com valor. O cão não era filhote, já estava crescido. E o menino achou estranho, ele não gostar muito de brincar. Não fazia como Laguinha que saia do galinheiro e ia direto para perto da porta da casa, buscar as suas mãos e as migalhas. Ele quase não se chegava. Ficava retraído, deitado no portão da casa. Era o menino que tinha de chegar no bicho. E, às vezes, ele nem gostava de carinho. O menino se chegava e ele logo se retesava, eriçava o pêlo, rosnava baxinho para ninguém ouvir. Reclamou: “Pai, esse cachorro é estranho, tem dia que ele rosna pra mim, acho que ele não gosta de mim. Na verdade, eu acho que ele não gosta de ninguém. Gosta de ficar sozinho esse cão”.“Para proteger a casa ele serve filho”, respondia.
E ai, Laguinha não podia mais ficar solta o dia inteiro. Nenhum bicho! Só rapidamente para esticar um pouco os músculos e ciscar um pouco as minhocas e formigas perdidas. E ele quase não via mais Laguinha. Só quando entrava no galinheiro. Mas não era a mesma coisa. Bom era ver Laguinha se chegando, vindo meio atabalhoada, distraída, cínica, olhando tudo. Fazia até um pouco de charme, Laguinha! Laguinha mais perto do menino que das galinhas, parava. Fazia que voltava, rodopiava, fingia que olhava, fingia que ciscava. Ai o Menino tinha de ir ao encontro de Laguinha! Ele também um pouco charmoso. Ia devagar, os dois agora bem próximos, o Menino abaixado, simulando gestos. E quando nada mais restava a ser feito, quando nenhum gesto podia mais ocultar o real sentimento, os dois caminhavam de verdade, num embate fraterno, para o concreto ato da amizade. Laguinha quase empoleirada na sua mão atrás das migalinhas. E ele contente de poder acariciar Laguinha e vê-la de perto. Veja bem: uma galinha que gosta de carinho. Veja bem: um Menino que gosta de acariciar galinha. Isso não tinha de ser contado?
E agora Laguinha no poleiro nem gostava muito de comer muito as migalhas que o Menino preparava. Preferia comer junto com as outras. A ração de todos os dias. E o menino, na penumbra do galinheiro, não via bem os detalhes de Laguinha. Ela também, nem parada ficava, atiçada pelas outras galinhas. Nem dava para fazer carinho. Nem dava para receber carinho. Tudo muito conturbado ali dentro!
Hoje o Menino estava com muita saudade de Laguinha como era. Ele e Laguinha estavam parecidos com os passarinhos que não cantavam. O Menino preso em sua tristeza.
Alguma coisa tinha que ser feita.
E não é que o Menino, um tempo depois de ficar bastante triste, para sua surpresa, pois isso nunca acontecia, estava sozinho em casa?! E Por quê? O cão havia fugido! O pai saia agora para procurar o bicho que escapara no meio da noite. Então ficaria ele de novo alegre? Ele, Laguinha e as migalinhas?
Como correu o Menino para abrir o galinheiro! Arfava, pulava, tropeçava em tanta alegria. Abriu e logo tornou a correr depressa para dentro de casa, para pegar as migalhas de pão e ficar na beirada da porta à espera de Laguinha. E ele já via Laguinha se distanciando das outras galinhas. Só ela, toda-toda, com os seus pulinhos e bater de asas, num zig-zag desengonçado, vinha para tirar os atrasos da alegria. Laguinha pulava tanto que quase voava. Não havia nem tempo para fazer charme, como os amantes atropelados pela saudade.
Laguinha na sua mão, duradoura, abandonada nas migalinhas, lânguida para os carinhos. Ele olhando para o que já estava lançado como o inacreditável acontecimento.
E não é que as outras galinhas ficaram com ciúme de Laguinha? Será que nesse tempo de reclusão ela havia contado para as outras galinhas o que fazia lá longe do galinheiro? Porque agora, num momento só, corriam em sua direção, desordenadas, todas as outras galinhas, umas atrás das outras, desesperadas, com pulos de dar inveja a macacos. Por quê, senão, qual outra explicação, para tamanha correria das galinhas? Todas então, agora, para as migalhas e os carinhos na mão do Menino? Quantas mãos e migalhas teria que ter? Então era isso, toda alegria implodida em Laguinha, como num feitiço, contagiara todas as outras? Galinhas solidárias essas que com tanta tristeza de uma só galinha, explodiam em passeata em busca de tamanha utopia...
Mas as galinhas desordenadas não vinham com cara de quem sorria...
Voavam penas das galinhas, aos montes. Distantes, nem Laguinha nem o Menino ainda entendiam o acontecido. E foi aqui, nesse instante, que também Laguinha e o Menino, perderam o encantamento da Estória. Era o cão encontrado. Uma, duas, três, quatro galinhas, já não voavam. E agora, já era pouca à distância do cão. Ambos assustados fizeram inconseqüentes gestos sem retorno. Laguinha, já longe da mão do Menino, corria para não se sabe onde. O Menino, em vão, tentando afastar o cão. Mas era o cão, com os seus dentes a solta, que espantava o Menino para dentro de casa. E o pai lá longe, correndo e assustado, desprevenido, mais desesperados que todos, vislumbrando todas as tragédias e tristezas, tentava.
O Menino não queria ver o que já esperava. Ninguém queria. Acuado atrás da porta, o menino chorava de medo e de vergonha. E de muita dor. Ele não olhando para o que já estava lançado como o inacreditável acontecimento.
Depois desse dia, nunca mais o Menino foi menino. E o pai, do que dele restava sem o Menino? E do mundo sem Laguinha?