Para Renata
Faz uns três anos que não nos víamos, não é isso? E quem, ontem, ao olhar para nós dois sentados, um diante do outro, numa lanchonete qualquer da zona sul da cidade, poderia medir essa quantidade de tempo absurda que passamos sem nos ver? Estávamos lá, duas almas atentas, o olhar fixo para não perder nada do outro, desprezando todo o resto do mundo que nos rodeava, os corações vibrantes, as frases confessionais extraídas do melhor da intimidade. Com tudo isso era impossível alguém afirmar o contrário disso: eram melhores amigos, irmãos talvez, amantes ávidos de saudade, duas pessoas que passaram a vida inteira juntos sem jamais se desgrudar. Emitíamos, certamente, uma espécie de clarão.
E era isso o que constatávamos sempre, segundo após segundo, frase após frase: que jamais nos separamos, desprezando toda e qualquer assertiva da materialidade e do espaço. Éramos dois corpos que ultrapassavam as leis da física, unidos pela sintonia dos afetos, por uma sensibilidade dilatada que percebe o mundo além do visível, com nossos olhares agudos, com nossas almas despertas ás mínimas sutilezas da vida, almas capazes de extrair a tristeza mais terna ou a beleza mais sublime de pequenas partículas da realidade. Se um rosto, um cão, uma pedra, pouco importava, as coisas nos atingiam por lugares inimagináveis, penetrando-nos com o seu sêmen, e no mesmo instante sofríamos as transformações de suas interferências, sutis, mas fundamentais, que pouco a pouco, se juntavam a tantas outras, que não menos arbitrárias a nossa vontade, estavam acumuladas na nossa alma sempre bem educada e gorda para qualquer gota de vida, boa ou má. Éramos sempre dois seres grávidos, grávidos inclusive do vazio que na sua metafísica nos atingia com a força eqüilátera de qualquer matéria.
Constatávamos as soluções e os problemas daqueles que sentem demais a vida. E até percebemos que essa sensibilidade microscópica nos provocou – talvez no mesmo dia e na mesma hora – efeitos terríveis para os nossos corações. Será que foi a mesma visão que palpitou demais o nosso coração a ponto de diagnosticarmos uma taquicardia? Será que foi a mesma dor do mundo que nos atingiu – eu em pleno centro do Rio e você numa tarde abafada no centro de Buenos Aires – e que nos fez desmaiar sem hesitação? Talvez estivéssemos percebendo a mesma catástrofe cotidiana, talvez quiséssemos dizer a mesma coisa, compartilhar com alguém o mesmo sopro de vida imenso que nos impregnava, e o resultado de não acharmos meios ou a pessoa certa, capaz de, sem o auxílio das palavras, entender tudo o que não dizíamos, numa intimidade eterna que vislumbra logo a intenção antes de qualquer gesto, foi ver a nossa saúde ameaçada, envolvida num desses paradoxos irônicos do destino onde os extremos, apenas por um momento, se aproximam e se transmutam. E nós, vítimas dessa sensibilidade recrudescida, estávamos agora dispostos a condená-la por tudo que ela nos dava. Inventávamos até uma sensibilidade doentia.
Éramos, então, obrigados a dar a esse amálgama um pouco de lucidez para não sofrermos demais. Porque o sentir acaba nos impelindo a uma depuração. No seu auge, ele não mais se contenta com aquilo que simplesmente chega e nos atravessa, mas exige uma perseverança da forma, onde podemos transformar o que sofremos em agradecimentos, pois nessa instância já saberemos ser todo o ato e todo o sentimento que nos atinge, fecundados de uma cópula onde o que nasce, dessa comunhão com a vida, é algo que toca a atmosfera de uma obra de arte (não é acaso a nossa afinidade com a arte).
E não é o que fazemos, o que não paramos de fazer, senão obras de artes de nossas impressões? Pois os teus desenhos e os meus textos não deixam de ser reflexos e reflexões sobre tudo aquilo que nos afeta. E mesmo o que talvez não ganhe a expressão de alguma forma artística, como talvez algum dos momentos em que vivemos na intimidade de nosso mais puro prazer (uma tarde de domingo onde fechamos os olhos para relembrar o exato momento em que um amigo querido nos presenteou com um livro e sua dedicatória; ou numa noite escura em que esse amigo tenta relembrar com toda a sua força a pergunta feita - dela para um professor antigo - que irá desvendar a sua agonia), é rodeado por um halo de poesia. Poesia essa à flor da pele, da nossa pele, que nos condena e nos expurga para um destino que não se contenta jamais com a banalidade de ser só ele. É que o ser é sempre menor que o não-ser. E nesse afã de não cabermos em nós, de ultrapassar o que nos ultrapassa, conseguimos, mesmo que com sofrimento, chegar a essa parcela de vida rara, rarefeita, onde podemos gozar uma serenidade singular. Serenidade fruto desse encontro, dessa intimidade crua, onde somos um e todos. Sensíveis e totais. Ecos das coisas e dos seres. Íntimos de tudo, inclusive de nós mesmo, eu e você, nós dois, que como corpos estávamos diante um do outro numa lanchonete perdida na zona sul do Rio de Janeiro. Mas que como almas éramos íntimos também da pedra, do mar, da criança, da morte, da arte, da amizade, do sol, do tempo, do afeto, do amor, do infinito...
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