No átimo de tempo onde o homem possui uma consciência, ele entrevê a sua finitude, não como espécie, mas como indivíduo, e é também a partir dessa consciência de si que o homem pode vislumbrar uma tentativa de ultrapassar essa linha efêmera de vida que o relega ao destino do esquecimento. Algo no homem sugere uma outra forma de permanência que não aquela sugerida pela circularidade da vida das coisas da natureza que, tal como nos aponta Hannah Arendt, no mundo grego, conferia um status de imortalidade. O homem contesta esse caráter de imortalidade construindo para si um material que preservaria, no sentido e até onde no tempo o homem perdurasse, os feitos e as falas significativas, dignas da memória, na qual ele pudesse angariar para si uma sabedoria e uma experiência.
É de grande valia a análise de Hannah Arendt sobre as questões da origem da poesia e da história em seu livro Entre o passado e o futuro, principalmente quando ela nos relembra a passagem onde Odisseu escuta os seus próprios feitos na Guerra de Tróia na corte dos Feácios. Estaria ali na Odisséia a origem da história e da poesia condensadas em uma passagem? Mais do que apenas um grande exemplo, o que podemos extrair desse trecho é o caráter incontestável de busca no mundo grego pela preservação da ação e da fala, seja através da mitologia, da história, da poesia ou da filosofia. É lá que o homem passa a construir uma estrutura lingüística em que ele pode reter uma sabedoria de vida que pode se levado a outras vidas e tempos.
Seja na forma poética ou histórica, o que está em jogo lá no mundo grego, e agora também, é o que vale a pena recordar do mundo e do homem. O que vale recordar para ultrapassar a práksis e léksis para ganhar o estatuto de história e poesia? Porque o homem busca escrever para obter uma outra relação de experiência com a vida? Entre tantas respostas possíveis podemos dizer que o homem faz poesia ou história para penetrar no ser. Penetra-se mais quando o homem volta para si mesmo sem, no entanto deixar de penetrar naquilo que o circunda e que lha dá o limite de suas condições, ou seja, a natureza. É nesse duplo espelhamento que através da poesia e da história que o homem pode atravessar a ponte entre o instante e o eterno, mesmo sendo este eterno do tamanho da natureza do homem.
É nesse sentido que podemos dizer que a poesia e a história cravam uma memória dentro da consciência do homem para além de sua memória habitual. A memória cravada é a memória lapidada e inspirada daquilo que no instante soube transcender, numa espécie de ressonância, um sentido. Não é qualquer ato ou falo que se transforma, não é tudo que é digno da memória. O esquecimento é um espetáculo que se representa todas as noites, como nos diz Wilhelm Jensen. Podemos dizer que a memória do que é digno de ser recordado requer trabalho, mas não um trabalho qualquer: evocar a memória é antes evocar também os meios pelos quais o objeto ganha para si a coloração que realçara a plenitude que, imerso no instante, ele não pôde perceber ou realizar. A poesia e a história são os esmeros do homem para o homem. É nessa busca, nesse trabalho infindável, que o homem tem a chance de não permitir que haja uma lacuna entre o passado e o futuro, como bem apontou Hannah Arendt, que ele possa se fazer coeso e livre, fruto do passado e da memória.
A memória feita pela história e pela poesia é o grande tecido vital pela qual a vida, não esquecendo dos componentes de que ela é feita, preservando a sua matéria, pode restituir e iluminar, regenerar e tornar híbrida a existência que um dia foi perdida. Poesia e história como grandes seivas terrestres capazes de irrigar com plenitude os feitos e falas dos homens, presentes, passados, futuros.
terça-feira, 29 de julho de 2008
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Um comentário:
Pena que "história" sempre nos remeta apenas à Grécia antiga... quem fala sobre outras civilizações antigas tão complexas como a grega; como os maias, os astecas, os incas? Fica parecendo que "história" é um privilégio da Europa...
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