Estou esgotado. Uma dor profunda me atormenta. Já é noite. Passei o dia inteiro diante de um livro de filosofia, A Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant, e não consegui avançar nem cinco páginas. Certo é que o conteúdo é de difícil acesso mesmo, mas não foi esse o problema. Nem também a concentração desse jovem leitor que às vezes o impede, sem o mínimo esforço, de focar continuamente o instante. O problema não vinha de dentro da relação sujeito-livro, mas de tudo que a circundava e que a impossibilitava: entre telefonemas, conversas altas, interrupções, sons de televisão e rádio...não consegui me concentar para realizar a leitura. Então, depois de quase três horas de batalha silenciosa com o meu redor, resolvi sair e andar pelas ruas. Tento reproduzir aqui o que pensei durante a caminhada.
Estamos vivendo num tempo inimigo da solidão. Esta é sempre pensada numa lógica negativa. Pessoa só = pessoa triste ou com problemas. Creio que a solidão é muito mais que isso. Mas das delícias da solidão somos privados. A sociedade não permite ao individuo nenhum momento de paz. Há sempre algo que o convida, que o seduz, que clama por atenção. Entre propagandas, entre inúmeras informações, entre vastos entretenimentos, a subjetividade do individuo é solapada para a alienação de si. Tudo lhe chega, tudo ele absorve. Mas pouco faz com esse mundo que se tornou grande demais porque o que falta agora é consciência de si, trabalho de si. Não há tempo para o nosso encontro. Vale lembrar o que disse Vergílio Ferreira acerca da solidão: " A solidão tem que ver conosco, não com os outros ; e o isolamento é só com os outros que tem que ver. O isolamento gera-se numa dimensão física; a solidão, numa dimensão metafísica. Assim, a solidão exprime apenas a ambiência de uma autenticidade."
A questão é que hoje a contemporaneidade não permite ao indivíduo nem a possibilidade desta dimensão física do isolamento para talvez se chegar na dimensão metafísica da solidão. Sim, sei que podemos estar só no meio da multidão. Mas falo de uma solidão mais interessada. Uma solidão desejada, onde o indivíduo encontra-se para extrair de si algo originário. Penso naqueles que não a procuram e que apenas se consomem na outra solidão, naquela dogmatizada como uma patologia. Perdem algo muito valioso, inolvidável e intransferível. Pois, o que pode dizer de substancial o individuo - e a sociedade que o gera e o representa - que não sabe nada de si?
Lembro também de Dostoiévski em seu "Diário de um escritor" dizendo que o pior de sua prisão na Sibéria não foi o confinamento, mas a impossibilidade de isolar-se, de ficar só. Algo de heterogêneo se descobre e se cria no ato de estar só, ele sabia. Creio que também um dos problemas da contemporaneidade é o da emergência do novo. Há tempos que não criamos algo realmente novo e grande. Há tempos que reproduzimos, citamos, rememoramos - coisas importantíssimas para a constituição de um ser, de um povo - mas insuficiente para caracterizar algo como originário. Duvido que haja uma grande obra - artística, filosófica, científica, amorosa - que não tenha sido feita sem algum momento sublime de solidão.
Não fiz aqui uma apologia da solidão. Apenas tentei lhe restituir alguma qualidade que o mundo de hoje lhe nega. Para todos, alguma solidão.
sábado, 7 de julho de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Esse seu texto belíssimo e verdadeiro tem a ver com o seu primeiro "post" aqui no seu blog. Acho q nós, Zé; eu, vc, a Maíra, nós q escrevemos, estamos fadados a essa solidão sim, é como vc mesmo disse no final do texto, ninguém cria sem solidão. Mas eu também sofro da solidão patológica. Acho que minha solidão criativa é gerada pela solidão patológica. Não sei até q ponto esses "dois tipos", se é q não são UM SÓ, de solidão são indissociáveis.
Há um inegável fomento do ideal de massa, uma massa disforme que pula nas festas rave, que frequenta os points mais badalados - e lotados -das praias, dos eventos, dos bares e das boates. O marketing então atua de uma forma bastante incisiva impondo que: se você se está sozinho há algum problema contigo. Até porque sozinho ninguém repara no seu tênis da moda, no seu carro esportivo...
Lembro do " Demônios de Lundun ", que trata incidentalmente desse assunto:
" Todos sabem ler e estão, portanto, à mercê dos propagandistas, tanto do governo quanto do comércio, que possuem as fábricas de papel, de máquinas de linotipo e de prensar rotativas. Junte uma turba de homens e mulheres previamente condicionados pela leitura diária de jornais; submeta-os a uma orquestra com amplificadores, luzes brilhantes e o discurso de um demagogo que (como acontece com todos os demagogos) é ao mesmo tempo explorador e vítima da intoxicação das massas, e em pouco tempo você pode reduzi-los a um estado de subumanidade. Nunca tão poucos foram capazes de transformar tantos em tolos, maníacos e criminosos. ( Os Demônios de Lundun / Aldous Huxley ).
Claramente a solidão, pressuposto obrigatório da meditação, do conhecimento e da individualidade se coloca como um obstáculo ao projeto da idiotização coletiva. E para que possamos fugir do indivíduo e de todas as responsabilidades a ele atreladas vamos ao show, vamos pro bar, vamos pra festa, uma festa contínua e ininterrupta, que nos obscurece a mente e funciona como um delicioso psicotrópico anestesiando a vida. É isso aí...
...Belo texto irmão !Parabéns !
O comentário anterior lembrou-me Debord e tbm a euforia constante à qual Nicolau Sevcenko diz estarmos submetidos em "A Corrida para o Século XXI: no Loop da Montanha-Russa".
Postar um comentário