quarta-feira, 30 de abril de 2008

Lua Catalã

Sonhei com ela, onde só eu a via. Lua única que carregava consigo uma névoa (sem semelhança com nuvens). Todos só a perceberam quando lhe cravei o nome, que me veio também único: Lua Catalã. Não sei mais nada sobre ela, os seus efeitos, a sua origem, o seu sentido. Ainda bem que não me perguntaram nada pois não saberia dizer nada além de seu nome. Imersa no meu sonho, translúcida no meu sonho, consta para mim como uma daquelas poesias que permanecem obscuras, invariáveis a qualquer explicação, durante toda a vida. A Lua Catalã carrega consigo a sua névoa, espécie de vidro embaçado pelo nosso hálito quando nos aproximamos.

terça-feira, 15 de abril de 2008

O Guia e a Bússola

O nosso herói, entre todos os homens de todos os tempos, era o único que possuía o endereço de casa - e era de lá também que se originavam todos os homens. Ele, não menos homem nem mais herói que os demais, era também obrigado a percorrer – até a sua morte – aquilo que chamavam de destino. Não sabemos o real motivo, mas o nosso herói obtendo o endereço nas mãos – que todos os outros queriam possuir, dos mais sábios aos mais tolos – não o mostrou a ninguém. Certamente, não era caso de egoísmo ou vaidade. È que a mensagem não possuía valor algum tão logo a sua casa se tornava mais distante e ele começava a cravar os pés e os olhos na realidade do horizonte.

Durante o seu vagar ininterrupto via os outros homens, com seus olhos lacrimosos e suplicantes, procurarem insaciavelmente aquilo que ele continha. Uns chegavam a interromper os próprios passos com medo de errar o caminho, outros retrocediam e se tornavam um pouco mais infantis. Mas o nosso herói errava como todos os outros e prosseguia. A mensagem, contendo somente o lugar de onde vinham, não apontava para lugar nenhum. O nosso herói, na medida em que o tempo e o movimento se dilatavam, via-a cada vez mais ilegível e inútil.

Era tão grande a esperança que os homens depositavam na mensagem que, talvez com medo de desiludi-los e colocá-los assim numa outra ilusão é que o nosso herói – e ele só era herói por isso – ocultava até o insuportável a mensagem. Carregava consigo o mal-entendido.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Ausência da referência

Observo da janela as árvores, os pássaros. Vejo-os sempre além do que são: vejo na memória algum semelhante outono numa cidade antiga de minha juventude, o mesmo clima, o mesmo farfalhar das folhas, o mesmo canto do pássaro. Não sou capaz de dar àquilo que vejo uma liberdade plena. O presente é sempre reenviado a algo que não pertence a ele. Dou outra cor ao pássaro e ao canto como se eles precisassem, para existirem, da força de minha imaginação. Faço-os virarem fantasmas em preto e branco tão logo os vejo com os olhos de minha recognição. É óbvio que eles existem plenos sem o aval de minha memória. A verdadeira visão é esse pássaro, no pouso e no canto, sem adição, no seu futuro movimento que não adivinho, no seu invisível vôo melódico, na sua cor desafiada pelo sol que me atinge extremamente forte e singular, una e múltipla.

domingo, 6 de abril de 2008

Referência da ausência

Recordo o estado de solidão em que vivia ao caminhar pelas ruas daquela cidade antiga de minha juventude, mas não lembro a quem aquele estado de solidão se referia. Que ausência? Nada parece ter restado daquele sentimento desesperado senão aquelas ruas amontoadas de gente, o entardecer fino e lúgubre, o rio e sua ponte, e as lojas que não me diziam absolutamente nada. Era somente um andar perdido, ressentido, ensimesmado. E a quem ele se dedicava? A quem eu dedico essas palavras?

De uma certa maneira, a dimensão exterior do sentimento vai se esvaindo de nossa memória e realidade, ficando somente em nós, talvez, uma cidade inóspita,um olhar perdido entre as coisas, um quarto escuro e húmido pelas nossas lágrimas, e nada mais. Mas a paixão e o amor...que paixão, que amor?