terça-feira, 31 de julho de 2007

Bergman e Antonioni

E, assim, numa tacada só, perdemos dois grandes mestres do cinema: Bergman e Antonioni. Numa segunda-feira fria e desértica, apta para os personagens silenciosos do sueco e para o vagar perdido dos personagens do italiano, fiquei eu mesmo silencioso e perdido. O que me resta é ver e rever a obra, numa homenagem tão pequena, e procurar ali os afetos e pensamentos que genialmente estão exposto, colocando-os em mim. Alongando-os no tempo.
Apesar das diferenças, tocam em lugares comuns. Não vou fazer uma crítica aqui de nenhum deles porque não sou capaz. Lembro apenas uma frase de cada um, dando continuidade à crítica e aos textos anteriores que coloquei aqui, que revelam uma influência explícita. Também sobre o amor.
Antonioni diz que o mundo contemporâneo está "doente de Eros". Bergman diz que no nosso tempo todos são "Analfabetos sentimentais".
Fica a homenagem e a dica pra quem não conhece a obra. Qualquer filme vale. Mas tem que se preparar...longe do formato americano, o filme exige. Pede do espectador mais do que pode dar e receber. É necessário rever, sempre. E ficar ruminando tudo...como naquelas obras de artes eternas. Com Bergman e Antonioni aprendemos a ver. Não somente ver uma imagem cinematográfica, mas a ver e ler a vida com mais detalhe, com mais particularidade, com mais impessoalidade.
Obrigado.

sábado, 28 de julho de 2007

Emergência do novo

Estamos carentes do novo. E nessa busca frenética por algo novo realmente grande que faça uma ruptura impactante, banalizamos o novo. É tudo uma novidade média. Digo isso porque parece que no contemporâneo a coisa já nasce querendo ser nova, reivindicando uma vanguarda. Mas suspeito dessas coisas que tem a ambição de já ser um James Joyce logo na sua primeira página. Antes do novo, antes da beleza, parece que a criação artística tem um compromisso com a verdade. E as vezes a verdade se repete, se sustenta, pede para ser exaurida. Temos mesmo que entrar nela como quem entra numa prisão para sairmos realmente livres. A busca pelo novo deve continuar, mas não com essa sede de já ser. Às vezes é brincando mesmo no repetido que se encontra um novo modo de ser.

A prova

A existência do Amor é a prova de que nada, nem ninguém, se basta.

Cinco textos inúteis e um poema

A utilidade parece ser uma das mais importantes categorias que configuram o nosso modo de ser atual. Eu, como bom contemporâneo, ultimamente tenho questionado a utilidade de tudo, inclusive a minha própria. Então descobri, fortemente influenciado por essa nossa realidade, que se tornou o que se é - e sabemos que o mais natural, o mais habitual, não é tão natural assim - que sou uma das coisas mais inúteis de meu tempo.
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O meu interesse sempre se desenvolve onde não há pragmatismo. Ando gostando daquelas coisas que só existem, e se consomem na própria existência. Ando gostando daquelas coisas que ficam em silêncio dentro da gente, quase paradas, durando e brincando, sem exigências de nenhum ato.
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A arte, e principalmente a música, é uma das coisas mais inúteis da vida. Ela é e pronto. A melodia se desenvolve, grita pro mundo alguma coisa e cessa. Acontece. Algumas pessoas sentem interferências dessas ondas que fazem uma espécie de coceira em nossos ouvidos e nossa alma. As vezes dói também, lateja lá no fundo. Mas me parece que toda dor é também inútil. A melodia...o que se ganha compondo-a senão o inútil de nós mesmos. Adoro a música que de tão inútil é essencial.
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E nessa crítica à utilidade coloco em questão os afetos. Será que a gente só consegue gostar, num egoísmo delicado e profundo, daquilo que de alguma forma para nós terá alguma serventia? Nós é que estamos escravos dessa lógica do sentir que está imersa na lógica do obter. O amor e amizade estão entranhados, doentes. As vezes o que se ama não é o ser, mas o gesto dele que nos vem até nós, nos agradando. Pode-se transferir a pessoa e ficar com o gesto. E assim os beijos se reproduzem aos montes nessa juventude...de boca em boca..atrás do prazer que se cumpre. O amor mesmo não ama a pessoa- e toda pessoa é feita de mais inutilidade que utilidade - torna-se descartável. - ama o gesto. O amor virou capital de troca, com margem de lucro, deficit, alta e queda na bolsa de valores de nossos sentimentos.
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Tenho fugido dessa lógica como de uma epidemia que se pega pelo ar, apenas pelo convívio. E o lugar de quem foge, às vezes, é o exílio para o país dos desiludidos. Lá tem muita gente. Poetas, heróis, vilões, crianças, pessoas que quase morreram de amor, seja qual amor por qualquer coisa. E no país dos desiludidos o tempo é outro, convive-se com gente morta e até com gente que ainda não nasceu e já está desiludida. Fetos que ainda na barriga da mãe se agarram a qualquer coisa para não cair no abismo do mundo. E entrem os que vivem, os que viveram e aqueles que não querem viver...encontro um senhor, já careca, óculos grande acima dos olhos, uma aparência tão simples, tão estranha para aqueles que acabam de chegar no país do desiludidos, que me emociona. Carrega consigo uma folha de papel que diz com muita mais beleza tudo que tentei dizer aqui. E ele era, também, um desiludido do amor. Daquele amor, também, mais além daquele de homem e mulher. Desiludido do amor bruto do ser com a vida. Eis o poema de nosso amigo:
* * *
AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 7 de julho de 2007

Para todos, alguma solidão

Estou esgotado. Uma dor profunda me atormenta. Já é noite. Passei o dia inteiro diante de um livro de filosofia, A Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant, e não consegui avançar nem cinco páginas. Certo é que o conteúdo é de difícil acesso mesmo, mas não foi esse o problema. Nem também a concentração desse jovem leitor que às vezes o impede, sem o mínimo esforço, de focar continuamente o instante. O problema não vinha de dentro da relação sujeito-livro, mas de tudo que a circundava e que a impossibilitava: entre telefonemas, conversas altas, interrupções, sons de televisão e rádio...não consegui me concentar para realizar a leitura. Então, depois de quase três horas de batalha silenciosa com o meu redor, resolvi sair e andar pelas ruas. Tento reproduzir aqui o que pensei durante a caminhada.

Estamos vivendo num tempo inimigo da solidão. Esta é sempre pensada numa lógica negativa. Pessoa só = pessoa triste ou com problemas. Creio que a solidão é muito mais que isso. Mas das delícias da solidão somos privados. A sociedade não permite ao individuo nenhum momento de paz. Há sempre algo que o convida, que o seduz, que clama por atenção. Entre propagandas, entre inúmeras informações, entre vastos entretenimentos, a subjetividade do individuo é solapada para a alienação de si. Tudo lhe chega, tudo ele absorve. Mas pouco faz com esse mundo que se tornou grande demais porque o que falta agora é consciência de si, trabalho de si. Não há tempo para o nosso encontro. Vale lembrar o que disse Vergílio Ferreira acerca da solidão: " A solidão tem que ver conosco, não com os outros ; e o isolamento é só com os outros que tem que ver. O isolamento gera-se numa dimensão física; a solidão, numa dimensão metafísica. Assim, a solidão exprime apenas a ambiência de uma autenticidade."

A questão é que hoje a contemporaneidade não permite ao indivíduo nem a possibilidade desta dimensão física do isolamento para talvez se chegar na dimensão metafísica da solidão. Sim, sei que podemos estar só no meio da multidão. Mas falo de uma solidão mais interessada. Uma solidão desejada, onde o indivíduo encontra-se para extrair de si algo originário. Penso naqueles que não a procuram e que apenas se consomem na outra solidão, naquela dogmatizada como uma patologia. Perdem algo muito valioso, inolvidável e intransferível. Pois, o que pode dizer de substancial o individuo - e a sociedade que o gera e o representa - que não sabe nada de si?

Lembro também de Dostoiévski em seu "Diário de um escritor" dizendo que o pior de sua prisão na Sibéria não foi o confinamento, mas a impossibilidade de isolar-se, de ficar só. Algo de heterogêneo se descobre e se cria no ato de estar só, ele sabia. Creio que também um dos problemas da contemporaneidade é o da emergência do novo. Há tempos que não criamos algo realmente novo e grande. Há tempos que reproduzimos, citamos, rememoramos - coisas importantíssimas para a constituição de um ser, de um povo - mas insuficiente para caracterizar algo como originário. Duvido que haja uma grande obra - artística, filosófica, científica, amorosa - que não tenha sido feita sem algum momento sublime de solidão.

Não fiz aqui uma apologia da solidão. Apenas tentei lhe restituir alguma qualidade que o mundo de hoje lhe nega. Para todos, alguma solidão.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

A linha tênue

Em plena madrugada, acordei, ensopado de suor, sem saber distinguir aquilo que pensava. Parecia que eu estava entre a lembrança e a fantasia. Num primeiro momento, achei que isso fazia parte de um passado já muito perdido. Num segundo, pensei que fosse uma reminiscência de um sonho bem recente. Depois lembrei que não havia tempo em minha madrugada para sonhar. Parece que imaginei tudo.

Até agora não sei o que fiz, se sonhei ou lembrei. Depois de algum tempo não percebemos as raízes de nossas idéias. Quanto mais distantes ficamos da origem das coisas mais a confundimos, colocando nelas um pouco de nossa fantasia. Talvez, para alguém já bem envelhecido, não saber o que foi realmente vivido, a base de todo os seus pensamentos presentes, seja um grande tormento, impenetrável. Pois, ainda agora – sou um homem com pouquíssimos cabelos brancos – entro em desespero quando me ponho a lembrar de minha infância e olhar para o rosto de minha mãe com desconfiança.

Acho que vou carregar,assim como a humanidade carrega as suas histórias, esse embaralhamento de sensações e idéias. Não por minha vontade, mas porque sempre foi assim, imanente, desde todas as horas, sem a certeza de que foram reais. Talvez, na hora de minha morte – já um pouco acostumado com isso – eu não queira ter certeza de nada e, só por capricho, eu comece a brincar de sonhar com as minhas memórias e, com lágrimas nos olhos, lembrar de meus sonhos.

Coisas anônimas

Nunca saiu de casa com pretensões de encontrar-se. Nunca conversou com alguém para dizer um pouco de si. Dizer-se ou encontrar-se: para isso bastava a solidão e a casa. Na medida em que saía dela ia esquecendo-a. O ônibus, a calçada irregular, os olhares enviesados dos passantes, tudo isso determinava o vôo de seu pensamento. Interferiam as nuvens carregadas desse dia que não conseguiam desaguar. Tão imerso ficava entre as coisas. Tão imerso que não lembrava para onde ia.

E quando chegava em algum lugar não procurava nenhuma semelhança. E que idiotice seria isso. Não procurava nada. E tão bem fazia isso – esse desinteresse por si – que nutria muita coisa. Dizer isso? Não. Para que? Quem entenderia? Ouvia tudo, deixava as pessoas falarem ao vento. Se perguntavam alguma coisa sobre ele, respondia quase sem vontade com infinitas expressões curtas.

Para ele era sempre o outro que estava em jogo. E essa satisfação era intransferível...essa tola descoberta desinteressada das coisas...das coisas inteiramente anônimas. Coisas sem dono: para retê-las precisava existir e consumi-las em silêncio. Saboreando-as. Anônimo entre outros, entre ele mesmo.

E ninguém entendia o motivo daquela expressão no seu rosto.

Hora distraída

Foi dentro da hora distraída que o mundo raivou. Não havia como proteger-me. Nenhum apelo podia. O dia já era outro. Aqui dentro uma lucidez trôpega imobilizava. Mas o que explodia? Nada. Estava tudo contido, enrijecido, condensado como um átomo. Não havia como desfazê-lo. O jeito era deixá-lo dentro de mim, um pouco inútil. Será que um dia poderei esquecê-lo? Não. Impossível. O corte cresce dentro da gente fazendo implodir qualquer coisa. A pele cumpre bem o seu papel de maquiar a alma. E então, sabemos que é tolo tentar retornar para um estado sem sofrimento. Num belo dia – de sol ou de chuva – o mundo continua raivando dentro. Quase despercebido. Desesperado.