A utilidade parece ser uma das mais importantes categorias que configuram o nosso modo de ser atual. Eu, como bom contemporâneo, ultimamente tenho questionado a utilidade de tudo, inclusive a minha própria. Então descobri, fortemente influenciado por essa nossa realidade, que se tornou o que se é - e sabemos que o mais natural, o mais habitual, não é tão natural assim - que sou uma das coisas mais inúteis de meu tempo.
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O meu interesse sempre se desenvolve onde não há pragmatismo. Ando gostando daquelas coisas que só existem, e se consomem na própria existência. Ando gostando daquelas coisas que ficam em silêncio dentro da gente, quase paradas, durando e brincando, sem exigências de nenhum ato.
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A arte, e principalmente a música, é uma das coisas mais inúteis da vida. Ela é e pronto. A melodia se desenvolve, grita pro mundo alguma coisa e cessa. Acontece. Algumas pessoas sentem interferências dessas ondas que fazem uma espécie de coceira em nossos ouvidos e nossa alma. As vezes dói também, lateja lá no fundo. Mas me parece que toda dor é também inútil. A melodia...o que se ganha compondo-a senão o inútil de nós mesmos. Adoro a música que de tão inútil é essencial.
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E nessa crítica à utilidade coloco em questão os afetos. Será que a gente só consegue gostar, num egoísmo delicado e profundo, daquilo que de alguma forma para nós terá alguma serventia? Nós é que estamos escravos dessa lógica do sentir que está imersa na lógica do obter. O amor e amizade estão entranhados, doentes. As vezes o que se ama não é o ser, mas o gesto dele que nos vem até nós, nos agradando. Pode-se transferir a pessoa e ficar com o gesto. E assim os beijos se reproduzem aos montes nessa juventude...de boca em boca..atrás do prazer que se cumpre. O amor mesmo não ama a pessoa- e toda pessoa é feita de mais inutilidade que utilidade - torna-se descartável. - ama o gesto. O amor virou capital de troca, com margem de lucro, deficit, alta e queda na bolsa de valores de nossos sentimentos.
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Tenho fugido dessa lógica como de uma epidemia que se pega pelo ar, apenas pelo convívio. E o lugar de quem foge, às vezes, é o exílio para o país dos desiludidos. Lá tem muita gente. Poetas, heróis, vilões, crianças, pessoas que quase morreram de amor, seja qual amor por qualquer coisa. E no país dos desiludidos o tempo é outro, convive-se com gente morta e até com gente que ainda não nasceu e já está desiludida. Fetos que ainda na barriga da mãe se agarram a qualquer coisa para não cair no abismo do mundo. E entrem os que vivem, os que viveram e aqueles que não querem viver...encontro um senhor, já careca, óculos grande acima dos olhos, uma aparência tão simples, tão estranha para aqueles que acabam de chegar no país do desiludidos, que me emociona. Carrega consigo uma folha de papel que diz com muita mais beleza tudo que tentei dizer aqui. E ele era, também, um desiludido do amor. Daquele amor, também, mais além daquele de homem e mulher. Desiludido do amor bruto do ser com a vida. Eis o poema de nosso amigo:
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AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Carlos Drummond de Andrade)